A cidade depois do viaduto (mais um trecho)

Clandestino
As estradas não se cruzam porque o caminho é um só!
Ira! in Clandestino

Ninguém tem culpa de ser pobre, obvio!
E não se pode escolher por quem se apaixona.
Mais obvio ainda!

Havia por estas épocas uma série de festinhas que eram chamadas de ‘baile pró-formatura’ que serviam para um monte de coisas, menos para este fim.
Era nestas festinhas que se paquerava, ou melhor, onde se namorava.
Porque paquerar mesmo era na escola.
Tinha aquela coisa; conheciam as menininhas no colégio, jogavam aquelas conversas furadas e no fim de semana, quase sempre, apareciam estas festinhas e então convidavam as meninas pra irem juntos.
Quando a coisa tinha fundo, quando elas estavam mesmo a fim aceitavam e era o olimpo.
Na maioria das vezes a resposta era não.

Tinha gente, como o Sandro, que invertia a historia. Era ele a ser convidado pelas meninas.
Na única vez em Reinaldo convidou alguém a coisa toda deu errado.
Começou um namorinho numa quarta-feira, na sexta-feira convidou a garota para o baile que seria no sábado. Ela aceitou, ele sai pulando e batendo os calcanhares. Desta vez não ia ficar sozinho na festa...

O baile desta vez era na casa de um pessoal de posses, gente de sobrenome forte em Franco da Rocha.
Esta familia (que eu vou chamar de Martins para resguardar) era dona de algumas lojas de sapatos na cidade, e a filha deles estudava no mesmo período que os quatro - curiosamente, apesar da grana, numa escola publica.
Chamava-se Carmem.

Pois bem, Carmem junto com algumas outras amigas organizou tudo.
Telefonaram para os meninos convidando.
Foram chamados os caras considerados bonitinhos (Alandes Nico, Marcelo Dentinho, Sandro, óbvio), e também os que não eram tão bonitinhos, mas eram amigos dos bonitinhos (Ivan, Jorge, o moderno, Joel, Reinaldo).

Neste período Jorge, o moderno namorava, às escondidas, uma garota de nome Andréia.
E tinha de ser escondido mesmo.
A menina era filha de uma senhora nordestina dona de uma lojinha de roupas na mesma rua em que ficava a escola.
Tinha mania de se achar rica.
Era remediada e olhe lá!
Achava-se no topo da pirâmide social por freqüentar a casa dos Martins.

Era uma pessoa que hoje seria chamada de nojenta, de metida no mínimo e para ser educado!
E só porque Jorge era um duro, órfão, que cuidava do boteco deixado pelo pai a duras penas, ela julgava que Jorge não estava à altura de sua filha, que, diga-se de passagem, não era lá um primor de beleza.

Era baixinha, atarracada, uma morena bem comum.
Cabelos alisados e um imponente buço.
É a meninha tinha bigodes...
E então por tudo isto que descrevi é que o namoro tinha de ser secreto mesmo...
E chegou o sábado, o dia todo Reinaldo esperou pela festa ansioso, ia ser a primeira vez que iria chegar acompanhado a um baile, tudo combinado, tudo acertado.
Passaria na casa da namoradinha por volta das seis da tarde e não se atrasou um minuto sequer.
Desceu a rua na companhia do Ivan e, só que em vez da menina quem estava lá no ponto de encontro era a avó dela.

A velha quando o viu soltou a matilha de cachorros inteira foi simpática em não falar mal da mãe do cara, mas de resto...:
–Vagabundo, sem vergonha, seu safado, fica longe da minha neta, cachorro, eu devia quebrar a vassoura em você, pilantra.
Era nestes termos, e o Ivan meio que rindo meio que se escondendo foi indo embora e tratou de tirar o Reinaldo dali.
Depois de ter sido passado por uma descompostura daquelas sem nem argumentar foi pra festa convencido pelo camarada que seria melhor.
Chateado, mas foi.

Chegaram e tinha uma rodinha formada na porta da sala dos Martins, no centro da roda: Jorge.
Em volta dele toda a turma em silencio enquanto a mãe da anfitriã soltava um discurso sobre classes.
Uma conversa mole que só quem não queria é que não via ser de encomenda da mãe da namoradinha dele - Andréia.
Afinal não ficaria bem ele mesmo dizer algo em casa de outras pessoas, ainda que fosse de pessoas amigas.
Todos ouviam calados e, quando Reinaldo e Ivan chegaram o papo já ia pela metade.
Ficaram horrorizados imaginando o que já tinha sido dito:
-Então! – dizia ela – As pessoas devem ter consciência do seu lugar, por que quando ultrapassamos certos limites, sabe! Aquelas fronteiras entre o que somos e o que os outros são, nos tornamos pessoas medíocres. Eu acho que só podemos realmente viver em paz se cada qual viver no seu meio. Têm coisas que não se misturam, feito água e óleo...

Ela falava e procurava ver em volta se estavam todos prestando atenção procurando a aprovação da sua pequena platéia:
-Mesmo que a gente saiba que todos aqui ainda são muito novos e que provavelmente (assim espero), pensarão como eu num futuro, quando vocês tiverem seus filhos e alguns de vocês amealharem algum patrimônio e tiverem lá suas carreiras.

Aquilo foi deixando Reinaldo puto da vida. A mulher estava acabando com o cara (Jorge).
Dando uma aula de preconceito, usando um vocabulário rebuscado só para tentar humilhar ainda mais. Como se estivesse dizendo ‘alem de tudo sou culta e você não’.

E ninguém falava nada. ouviam calados. Podiam até não concordar, mas calavam.
Reinaldo foi ficando vermelho, tinha passado por algo semelhante à questão de meia hora, ainda que por motivo diferente já que a avó de sua namoradinha só não queria que ela se envolvesse com alguém, fosse quem fosse.
Ela já havia tido problemas com a filha, que era mãe solteira e morria de medo que acontecesse o mesmo com a neta.

Aproveitando uma brecha que ela deu, começando a falar sobre o que cada um queria ser o que iria estudar, carreiras e tal ele soltou:
-Dinheiro e posição social algumas vezes independem de estudo...
-Não! O estudo é a base para se ter dinheiro e posição...
E ele insistiu que não.

Ela bateu o pé e quando ele sentiu que os olhos estavam sobre si e não mais sobre o Jorge mandou na lata.
-Afinal o que o Sr. Martins estudou para ser o que é hoje...
-Ele trabalhou duro estudou administração num curso técnico!
-Que nada! E desde quando é preciso estudar administração pra ser bicheiro?
A mulher ficou pálida. Sua filha dela fez cara de choro.
A mãe da tal Andréia correu e se escondeu dentro da casa.
Silencio.
Ela ainda argumentou dizendo que o Sr. Martins era dono de lojas de sapato.
-Que isto, meu chefe lá da farmácia onde trabalho me manda quase todo dia ir fazer uma fézinha lá no chalé de jogo do bicho que funciona nos fundos da loja de sapatos do centro. É só fachada! As lojas estão sempre vazias! A mim ninguém engana não! Moral, sei! Água e óleo, tá bom.

O Sr. Martins que tava lá na sala dele tomando um uisquezinho engasgou, cuspiu a bebida no carpete.
A rodinha explodiu em gargalhadas e Reinaldo nunca mais foi convidado para as festas na casa dos Martins.
E pra nenhuma outra casa.

Não que fosse grande amigo do Jorge. Não era mesmo.
O que irritava profundamente era a forma velada com que a Sra. Martins punha para fora a certeza que tinha de serem ela, e o circulo de amigos da familia muito, mas muito superiores a todo o resto.
Uma conversinha furada de lugar na sociedade.

Oras se ali eram uns duros, também ainda eram adolescentes em idade escolar e as famílias nem tinham posses mesmo.
Claro que alguns estavam em melhor situação financeira que os outros como é normal em qualquer sociedade, mas a forma com que ela se expressava ofendia aos outros colegas ainda que eles ficassem quietos.
Talvez se a mãe da bigodudinha tivesse chamado o cara de canto ou mesmo para o centro da festa e tivesse dito na cara dele o que pensava, sem meias palavras e sem usar interlocutor - como a avó da namoradinha do Reinaldo fez - nada disso teria sido preciso.
Seria um problema deles, mas escancarar o preconceito que ela tinha do cara - que era mesmo pobre - e fazer com que engolissem isto achando que era normal, generalizando foi demais.

Por esta época ainda achava-se que existia a tal ‘igualdade’ entre todos os homens. Independente da cor, grana, classe social, crença.
Talvez fossem ingênuos demais para notar que estes pequenos acontecimentos eram corriqueiros e aquela frase do Geraldo Vandré: ‘Somos todos iguais, braços dados ou não’, era só licença poética mesmo.
Reinaldo acabou mostranto aos outros que não se deve deixar que ninguém os aponte o dedo pelo que sãos.
Sejam lá o que forem.

Comentários

Felipão disse…
Grande, Groo... Incrível a fraqueza dessas pessoas que acreditam muito mais no poder do dinheiro do que em qualquer outra coisa... Sem contar que a maioria dessas pessoas pisou, de alguma forma, na cabeça de alguém para ascender. Acho que teria a mesma atitude do rapaz, que não levou desaforo pra casa...
Marcos Antonio disse…
Com certeza milhares de família pensam dessa maneira e como o felipão falou,a maioria são de familias que ascenderam passando por cima de algo ou alguém.
o texto tá ótimo ,groo, você como sempre mandando muito bem e me faz torce rmais ainda pra que esse livro saia o mais breve possível!
Christian Camilo disse…
cara, muito bom Groo
vai sair um livro? vc esta escrevendo?
gosto de como vc escreve
Anselmo Coyote disse…
Olha o Groo aí,
Confesso, foi a primeira vez que li esses textos (depois do viaduto). Gostei.
Em algumas festinhas por aqui, na minha cidade, a gente comparecia como "convidado surpresa", injustamente chamados de "penetras".
Abs.
Anônimo disse…
Texto aplaudidíssimo, Groo. Mais um, mas pra ser honesto, desde que leio o blog, o melhor de todos.

Digo isso porque vivo constantemente este tipo de situação, e inclusive a avó materna de meu filho se parece muito com a Sra. Martins aqui descrita.

Só quem já viveu uma situação lamentável dessas pode entender o quanto isso fere e o quão pequenas são essas pessoas que se acham tão grandes por algo que não lhes pertencem - pertencem ao mundo material.
Anônimo disse…
grande texto Groo. Como todos falaram essa soberba é a pior coisa que existe. Ainda mais se famílias fizerem isso para esquecer um passado em que elas estiveram do outro lado... Parabéns