Mão pesada que tudo perdoa e a todos iguala, para o bem e para o mal dependendo do ponto de vista.
Para ela não há jeito.
Para a corriola de puxa sacos o morto era um semi-deus.
-Grande homem!-Bom coração!-Generoso...
-Diz que era bom marido, bom pai...
Para o valhacouto de desafetos era um mequetrefe de marca maior.
-Pulha.
-Canalha! Mão de vaca...
-Até a mãe dele o odiava.
-Ouvi dizer até que era viado...
E os indiferentes.
-Bem... Morreu que há de se fazer.
-Que vá em paz. Ou não.
-Já contei a vocês aquela piada do defunto que não aceitava que morreu?
-Não... Conta ai!
Os grupos cochichavam entre si sem, no entanto ouvirem um ao outro.
O fato é que Miguel tinha morrido devido a um enfarte naquela noite e foi encontrado em condições muito estranhas: nu na casinha do cachorro às duas e vinte da manhã.
Estes detalhes chegaram, para o espanto de todos, aos jornais que os presentes a seu velório já haviam lido.
Embora não comentassem, olhavam para o caixão com um grande ponto de interrogação sobre suas cabeças:
"-Na casinha do cachorro? E pelado?"
Quem contou aos jornais? E por quê?
A principio os únicos que viram foram: sua esposa; a empregada da casa, que foi quem o encontrou lá; seu filho, que foi o que o tirou de lá e claro: o cachorro que, óbvio, morava lá.
Embora este nunca conte nada a ninguém.
Já os outros...
Sua mulher o traía, há muito tempo e com muita gente.
Porém era apenas o troco...
O odiava, talvez não o quisesse morto.
Realmente não queria, mas já que morreu... Que se danasse!
Seu filho só vinha para casa uma vez por ano, não tinham contato e nem relação de pai e filho. Desde moleque só o chamava pelo nome e às vezes de coroa.
tanto fazia se morto ou vivo desde que ainda houvesse dinheiro em sua carteira.
A empregada era apenas isto mesmo, e como se sabe dificilmente uma empregada guarda segredo sobre as coisas dos patrões.
Nem que seja para ter o que falar em rodas de fofoca entre domesticas.
Com ele morto talvez não ficasse na casa.
Que seja, vida que segue – a dela, claro! – arrumaria outro emprego.
Até onde se sabe era mesmo um sem vergonha, safado, mas nunca foi zoófilo e ao que se sabe seu cachorro também não gostava dele.
Curiosamente era o único que aparentava alguma tristeza.
Não balançava o rabo.
De onde se encontra - não se sabe se céu ou inferno - olhava tudo com certo desprezo.
O mesmo desprezo que tinha por todos em vida: puxa sacos, desafetos, familiares, indiferentes e até o cachorro.
E mais, além de dividas e alguns bens que com certeza não as pagarão, deixa a dúvida: porque nu e na casinha do cachorro?
Ah a morte... Que tudo perdoa e a todos iguala, para o bem e para o mal, depende do ponto de vista.
Para ela não há jeito.
E pelo visto, nem respostas...
Comentários
e acho que o cachorro tava feliz sim, mais não mechia o rabo por outros motivos....
coitado do Miguel...
Uma triste história de vida.
abraço
Heuiheihuiehaiheihuea
... quem sabe morto ele voltara a ser?
Abs.
Não sei por que, mas esse conto me transmite paz.
Vai entender.
-|T|-
O cara estava sozinho em casa e, já despido, teve um mal súbito no banheiro, antes do banho (isso é importante).
O cão, atento, ouviu quando seu coração falhou duas vezes e na sequência o baque surdo do choque do corpo com o chão.
Fiel escudeiro, o cão arrastou-o até sua casinha, onde tentou ressucitá-lo, inclusive um boca-a-boca ou focinho-a-boca, tanto faz a esta altura, tendo em vista o desfecho verificado.
O fato é que o cara foi pra não voltar, não voltou nem levou o cão, deixando-o profundamente decepcionado, a ponto de não balancer o rabo durante todo o velório e funeral propriamente dito.
O banheiro, ah.. o banheiro. Como o
cara não teve tempo de se banhar e assim livrar-se da inhaca em que estava, o cão achou por bem não levá-lo de volta à casa, ainda mais depois de morto.
Abs.