O sambista húngaro

Canário acabara de chegar ao bar em companhia de Andrade que – aposentado - não tinha nada melhor para fazer.
Logo atrás entra pela porta ainda recém-aberta Derico, o fiscal da natureza.
Esbaforido, o rapaz não consegue dizer de pronto a noticia que trazia.

-Canário, dá um copo de água pra ele antes que ele tenha uma sincope.
-Mineral?  - Pergunta o botequeiro.
-Nada, dá de torneira mesmo... – devolve o professor aposentado.

Derico ao ouvir a conversa arregala os olhos como quem se sente ultrajado.
-Nem mineral e nem de torneira, cês tão querendo me matar?
Agora quem arregala os olhos são os dois.
-Me dá ou uma cerveja. Água faz mal.
-Como assim faz mal? – Pergunta Andrade.
-Eu posso ficar doente. – É a resposta.
-Fica doente nada... Ninguém fica doente tomando água. E você tem uma saúde de ferro!
-Por isto mesmo, Canário... A saúde é de ferro, cê me dá água pra tomar o que acontece? Enferruja.... Esquece a cerveja e me dá logo uma cachaça.

Canário então pega uma garrafa qualquer de água ardente
-Que isto Canário! Quer me matar mesmo, né?
-Cê não pediu cachaça? – Pergunta já se irritando.
-Cachaça, claro... Salinas, envelhecida quatro anos em barril de carvalho, não esta “três bombeiro” aí.
Mesmo contrariado o dono do bar serve uma cachaça mineira da cidade de Salinas.

-Mas agora conta o que você veio dizer. – Pressiona Andrade.
-Ah! É... Quase que esqueço. Ele voltou.
-Quem? Voltou de onde? – Quis saber Andrade.
-Camargo! O Camargo está de volta ao Brasil.
-E onde ele estava? – Pergunta Canário.
-Na Hungria, foi pra lá convidado para fazer algumas apresentações.
-Ora veja.... Eu nem sabia que ele cantava. – Diz Andrade.
-Pois é canta! Eu o encontrei agora a pouco e a tarde ele diz que vai estar aqui. - E entorna de uma só vez o copo com a nobre pinga.

A noticia se espalha e naquela tarde toda a turma se reúne no Canário´s para aguardar a chegada de Camargo.
Estão lá, entre outros, Andrade, Derico, Dito, Anízio, Pedro Marvio e Lucas tomando cervejas, comendo azeitonas e falando alto, mas todos se calam quando Camargo adentra o recinto.
-Boa tarde, pararam por quê?
-Opa, Camargo! – Cumprimenta Andrade – Não vamos ser cínicos não.... Estamos todos aqui pra saber esta história de você ter ido cantar na Hungria...
-Pois é meu caro professor.... Fui mostrar minha arte lá nas Europa! – E virando para o Canário – Me dá uma água tônica light.
-Light não tem... – diz Canário
-Então me dá uma comum.
Canário serve água de torneira, Camargo toma.
-Canário! Porra... Água de torneira? Eu pedi tônica!
-Tônica é a marca da torneira.... Agora conta pra gente aí que não aguentamos de curiosidade.
-Tá certo... Tá certo. Eu fui convidado para cantar uns sambas de minha autoria na Hungria e aceitei.
-Quem convidou? – Pergunta Pedro Marvio. – Quem foi o louco que você enganou?
-O grande empresário Manolo.
-Manolo é picareta! – observa Dito, o ex prefeito. – Tentou vender para a prefeitura um show de musica clássica sem nem ter uma orquestra.
-E o pior é que você comprou o show, não foi? – Diz Derico.
-Detalhe... Detalhe.... Mas continua. – Finaliza o ex mandatário.

-Claro... Dizia eu – caprichando na empáfia – Manolo me convidou para ir a Hungria cantar alguns sambas e eu fui. Chegando a Budapeste o grande Manolo agendou três shows em uma casa chamada Ingnoiev. Que recebe o pessoal húngaro da terceira idade... Na primeira noite e mandei meu repertorio: “Samba do Avião”, “Regra três”, “Você abusou” e “Tonga da mironga do kabuletê”. Foi um sucesso! Mas a certa altura o publico começou a pedir insistentemente: “-Julio, Julio, Julio...” e eu pensei que devia ser o cantor oficial da casa, mas Manolo veio me dizer que o publico queria ouvir uma musica do Julio Iglesias. Que eles queriam algo mais brasileiro.

-Espera aí canastrão.... Desde quando as músicas que você cantou são suas? Cê tava cantando Jobim, Vinicius e Toquinho!  E os caras pediram Julio Iglesias? E desde quando Julio Iglesias é brasileiro? - Se indigna Andrade.

-Calma mestre, eu sei, você sabe e talvez a torcida do Corinthians saiba, mas os húngaros não sabem que as canções não são minhas e que Iglesias não é brasileiro. E deixa eu continuar.... Então aleguei ao Manolo que não cantaria, afinal, nem gosto de Julio Iglesias, não sei uma musica dele sequer e nem falo espanhol. Mas ele disse: “-Ou canta, ou não recebe! ”. Na casa do sem jeito, aceitei... Peguei o violão, me sentei no banquinho e me esforcei para lembrar de algo do homem e num rompante de luz me recordei: “As veces tu, as veces yo”! E não tive duvidas, mandei um espanhol mandraque e quando chegava ao refrão, dava uma sacaneada básica e cantava: “-As veces c*, as veces b**da. Um dia mete outro no, quando no mete quer brigar...” e no fim era aplaudido de pé.

-Mas é safado mesmo.... Enganou todo mundo – recrimina Andrade – Mas já que ganhou dinheiro desonestamente, use para pagar as bebidas aí.... Vai!

Um “ehhhhh” foi ouvido até que:
-Não vai dar! – Disse Camargo - No ultimo show, logo no ultimo quando eu cantei o refrão da musica do Julio, uma turma se levantou no fundo da casa de shows e entre xingamentos e ameaças disse que aquilo era uma afronta! Que eu era uma fraude... O dono da casa foi até lá saber o que estava acontecendo e o porta voz do grupo explicou que o que eu estava cantando era uma indecência, uma imoralidade e que Julio Iglesias nunca cantaria aquilo... E traduziu pra ele o que era.... Fui expulso da casa sem receber um tostão...
-Húngaros que falavam espanhol? – Pergunta Derico. – Bem feito pra você, pilantra...
-Não.... Um bando de argentinos mesmo em excursão pela Europa.... Tinha que ser... O povinho safado estes argentinos.... Não podem ver ninguém trabalhando honestamente...

Comentários

Anônimo disse…
... como dizia o saudoso Bezerra da Silva: 'Bem Feito' !

. Mas, engraçado, este conto acho que já li. Das cachaças ! Salinas e três Bombeiro. Foi aí que o senhor me deu cartão vermelho por anos a fio ! Fui jogado quase ao ostracismo internético quando o Marcelonso me salvou. Foi pior que o juizeco do fra-Flu de domingo. As cachaças ! Tinha ido pros lados do sul de Minas e lá encontrei uma cachaça com um nome genial. Uma cachaça mineira com nome bacana. Li conto e eu, já com as minhas gracinhas engrachatas. Eu perguntava prá todos: 'Alguém aí já tomou Na..... ?', 'Quem quer tomar Na..... ?','Sugiro apreciar Na..... com moderação'. E o senhor ficou fulo da vida !
. Como estará Luladrão ? Não irá preso. Farão um carnaval vermelho, histérico, mas sempre jogam com a inocência do povo. O meliante esquerdopata adora 51. E Itaipava. E Brahma. Nós, brasileiros, adoramos tomar Na..... !
Como diria o Dinho, dos mamonas: ' Ai, como dói...'.

Sei não !


M.C.
Rubs disse…
Este conto é sensacional. Contudo, deixou de ter verossimilhança: a figura do aposentado se tornou anacrônica.
Abs
Anônimo disse…
Taí, Rubs ! 'Falou' pouco mas 'falou' bem. Mas, É professor aposentado. Pode ser de escola particular ou um Reitor da UFRJ ou USP. O primeiro, está morto, ainda trabalhando ou em casa, deprimido. O último, não estaria também num bar. Estaria em Nova York ou Paris.


M.C.