Canções para exorcizar a dor - Arnaldo Baptista

O ano era 1974.
Seu casamento havia acabado e ele havia largado sem maiores explicações a banda que fundara nos meados dos anos 60 e que agora seguia por outros caminhos. A perspectiva de uma carreira solo se esvaia como uma alucinação das montanhas de ácido lisérgico que consumia.

O futuro nunca lhe parecera tão incerto quando entrou na sala de Roberto Menescal, então diretor artístico da Philips. Queria apresentar o projeto de um disco solo, mas encontrava dificuldades em falar com André Midani, o chefão da companhia.Menescal se dispôs a ir com ele e ouvir o material composto. Notou então que as musicas, assim como o compositor tinham um tom triste. Muito longe do garotão irreverente que conhecia desde 1969.

Cantava como se cada música tivesse o poder de extravasar a dor e a confusão que sentia.
Ao voltar para o escritório, Menescal comunicou a André Midani que estava disposto a fazer um disco com aquele sujeito. Meio ressabiado e com o pé atrás Midadni deu o sinal verde.

Nascia ai o disco mais belo, sombrio e confessional de toda a história da musica popular brasileira. E porque não dizer do rock brasileiro: “Loki?” de Arnaldo Baptista. Produzido pela dupla Menescal/Mazzola e gravado nos Estúdios Eldorado, “Loki?” é o disco mais revolucionário e despojado da carreira de Arnaldo.

Para se ter uma idéia deste despojamento basta saber que é um disco de rock que não tem guitarras.
Apenas uma faixa tem violões, que são tocados pelo próprio Arnaldo.
Os músicos convidados pelo autor eram velhos conhecidos: o baixista Liminha, o baterista Dinho e o maestro e arranjador Rogério Duprat. Todos já haviam trabalhado com ele nos Mutantes.

Confuso?
O sujeito deixa a banda - não muito amigavelmente, diga-se - e depois a convida para tocar em seu disco solo? A confusão ainda vai aumentar quando você souber que Rita Lee - também ex-Mutantes - de quem Arnaldo acabara de se separar foi convidada para fazer os backing vocals. Era ela o motivo de toda dor expressa nas canções do álbum.

As gravações são conduzidas pelo piano de Arnaldo e abre com “Será que eu vou virar bolor?”.
“Venho me apegando ao passado/E em ter você ao meu lado/Não gosto do Alice Cooper onde é que está meu rock'n'roll?/Eu acho, eu vou voltar pra Cantareira”
referência à Serra da Cantareira é por ser onde Arnaldo e Rita moraram após o casamento.

A canção “Uma pessoa só” tinha sido composta para o disco “O A e o Z” dos Mutantes que a gravadora achou melhor, por questões comerciais, engavetar. Vale dizer aqui que a gravadora era a mesma Philips pela qual “Loki?” viria ao mundo. De letra viajante e claramente influenciada pelo LSD a música trazia alguns trechos incompreensíveis. Ou compreensíveis apenas para o autor: “Estamos numa boa pescando pessoas no mar/Aqui/Numa pessoa só”

A faixa seguinte, “Não estou nem ai” trás os vocais de Rita Lee e carrega num lirismo desesperador. A mensagem era clara para quem quisesse ouvir: “Porque eu não estou nem aí pra morte não estou nem aí pra sorte/Eu quero mais é decolar toda manhã/Quero decolar toda manhã” Acho que é desnecessário dizer o sentido de ‘decolar’ empregado aqui, não?
”Vou me afundar na lingerie” é a que mais se aproxima do espírito reinante nos áureos anos de Mutantes e esta é a ultima vez em que a trupe esteve reunida no estúdio de gravação.
Daqui para frente Rita apareceria no disco apenas como destinatário das mensagens das letras.

Depois da instrumental “Honky Tonky” em que mostra todo seu virtuosismo ao piano e chega à vez da letra que empresta o titulo ao disco.
”Cê ta pensando que sou Loki?”, apesar de descontraída, manda flechas na direção da ex-mulher em forma de versos: “A gente andou/A gente queimou/Muita coisa por aí” e arremata numa citação a dupla que Rita formou logo após ser convidada por ele a sair d´os Mutantes e pouco antes de formar o Tutti Fruti: as Cilibrinas do Éden: "Cilibrinas pra lá/Cilibrinas pra cá/eu sou velho, mas gosto de viajar”.

A pungente balada “Desculpe” é a mais explicita de todas e vale uma transcrição completa: "Desculpe se eu fiz você chorar/Te esqueça. Olhe, o sol chegou. Me abrace. Diga-me o meu nome. Diga que você me quer. Sinta o pulso de todos os tempos./Comigo/Até quando, eu não sei./Sinto o barato de todos os tempos./Comigo/Até quando, eu não sei./Mas desculpe, mas eu vou me fechar./Não sou perfeito, nem mesmo você é./Me abrace. Diga-me o meu nome. Diga que você me quer. Sinto o pulso de todos os tempos./Comigo/Até quando eu não sei./Sinta o barato de ser Ser humano. Comigo./Até quando deus quiser.”
Logo depois de completar o verso “não sou perfeito/nem você mesmo é” Arnaldo pronuncia a primeira silaba do nome de Rita e a prolonga até se transformar num grito dilacerado.

”Navegar de novo” é uma tentativa de compor algo que não fosse intimamente ligado a seus problemas. Uma critica social confusa demais e que ficou pelo caminho: "Está muito claro/Que está muito caro/O modelo do meu carro/Que eu comprei só a seis meses/E que já está fora de moda/E que está muito dura a vida/Nesta cidade de S. Paulo.”

”Te amo podes crer” com o verso: “E você me deu adeus/Como? Se nós somos de Deus”, domina a paisagem e impõe entre imagens quase cinza uma melodia triste que expõe a fundo a alma torturada do compositor.
É impossível ouvir esta canção e não se comover.

O fim, com os tais únicos violões do disco vem com “É fácil”:"Eu me amo como eu amo você. É fácil.”

O disco foi gravado em poucas seções e de forma rápida, como se Arnaldo quisesse se livrar logo daquelas canções. Tanto que nem os erros de andamento em algumas partes que Liminha e Dinho pediram para refazer foram consertados.
Arnaldo gravaria um ultimo disco de inéditas (“Elo perdido”) já com a Patrulha do Espaço; um disco mesclando canções inéditas e algumas antigas vertidas para inglês ("Singin´ Alone") e um ao vivo ("Faremos uma noitada excelente").

Arnaldo tentaria o suicídio no primeiro dia de 1982 se atirando de uma janela do Hospital do Servidor Publico na capital paulista. Esqueça Raul e as teorias sobre a paternidade do rock brasileiro.

O verdadeiro progenitor do gênero no Brasil é Arnaldo Baptista.
Não por “Loki?” claro... Mas por toda sua obra anterior.
Porque então não é reconhecido como tal? Simples.
Ainda está vivo e isto incomoda muito em um país onde se ganha respeito apenas após ter sido publicado o necrológio. Resolvi republicar este texto em comemoração ao lançamento do longa metragem "Loki?" do diretor Paulo Henrique Fontenelle que aborda a trajetória do grande Arnaldo Baptista. E por estar com a alma quase tão cinza quando a dele, ainda que por outro motivo...

Comentários

Loucos por F-1 disse…
Xiii Groo! Acho que não é do meu tempo.

Passa lá no Blog depois porque tem um post que vc vai gostar..rsrsrs. Tem o 1B como um dos personagens.

Abraço!

Leandro Montianele
Daniel Médici disse…
Apesar de algumas reservas minhas quanto à questão do póstumo no imaginário brasileiro, é inegável que este é um post à altura de Ron Groo.

Além do lançamento do filme, é oportuno também pelo anúncio do primeiro álbum de inéditas dos Mutantes desde 74...
oliver disse…
Pois é.

A música brasileira ........

Os nossos "bárbaros" se foram, até os mais "doces".
Marcos Antonio disse…
li da primeira vez e reli,pq foi uma resenha excelente. excepcional!

OBS: Tamos junto,Groo qualquer coisa é so gritar!
Felipão disse…
COnfesso que gosato muito desse período, mas ainda conheço pouco dessas obras. Assim, um texto como esse se torna essencial...
Unknown disse…
conheço muito pouco dos mutantes mais fiquei surpreso com o pouco que tenho escutado. muito original. vou procurar musica de Baptista em solo

tenho entendido que os Talking heads eram grandes fans do grupo. isso é verdade?
Renato Bellote disse…
Belo post!
Caro Groo:

Realmente merecia uma republicação...