A escola de samba de um homem só

Legitima expressão da cultura brasileira, o samba já produziu tantas pérolas quanto qualquer outro estilo musical.
Uma delas – pasmem – é algo que se aproxima de um dos marcos do rock progressivo: o disco conceitual.
A grosso modo, discos conceituais são aqueles em que o conjunto das músicas formam e passam uma ideia. Dark side of the moon e Animals do Pink Floyd; The Who Sell Out do The Who, Sgt. Peppers dos Beatles, entre tantos outros são exemplos – às vezes bons outras tenebrosos – desta vertente.
Notou que são todos de rock? Pois bem, aqui agora um de samba. Samba e com S maiúsculo.
E o autor da proeza é Jorge Ben, muito antes de ser Ben Jor ou voltar a ser Ben...
Jorge já definiu o som da batida de seu violão como: “...a batida de uma escola de samba em retirada.” e quando perguntado se o que faz é samba-rock (sic) ele responde que é simplesmente música. E quando pedem para que dê um nome ele diz: “-É sacundim sacundem...”.
Em 1974, no século passado, portanto, fez aquele que pode ser considerado o mais estranho e belo disco de sua carreira: A tabua de esmeraldas.

Curioso, estudioso e entusiasta da alquimia, Jorge construiu neste disco uma aula sobre o tema, homenageando seus cânones e passando suas principais idéias. Como num desfile de escola de samba pela avenida.

Os trabalhos são abertos com Jorge brincando com uma de suas backing vocal, provavelmente Evinha do trio Esperança, dizendo: “-Tem que dançar, dançando” ao que ela responde: “-E tem que gravar, gravando.”. 
É a senha para o violão de Jorge marcar o inicio de “Os alquimistas estão chegando”, uma ode ao trabalho dos cientistas descrevendo seus laboratórios, utensílios e o próprio trabalho embalado em um samba poderoso.
É a alquimia dando o ar da graça transmutando ciência em ouro para dançar...

Na sequência vem o “Homem da gravata florida” que ao contrário do que se pode pensar, também é uma homenagem a um nobre desta ciência: Paracelso, o criador da homeopatia e da chamada “agricultura celestial” que é plantar e colher ervas de acordo com o favorecimento planetário.
Como licença poética Jorge transmutou a echarpe colorida usada por Paracelso ao longo da vida em uma “linda gravata colorida”.

“Errare humanun est” é o que mais se aproxima de um “samba progressivo” cheio de efeitos e citando “Eram desuses astronautas? ”, livro do suíço Erich Von Daniken de muito sucesso na época e que defendia sermos fruto do cruzamento de seres extraterrenos com espécies primatas... O tema do livro é horrível, mas o samba é sensacional.

“Menina mulher da pele preta” é uma ode a miscigenação (alquimia?) com o agora poeta Jorge cantando sobre uma linda mulher de pele preta e olhos azuis que não o deixam dormir sossegado. O suingue da canção é de enlouquecer.

“Eu vou torcer” lança uma energia positiva e contagiante tirada dos valores incutidos no hinduísmo. Esta canção faz cantar junto até quem não gosta do Gato Barbieri ou não torce pelo Mengão.

“Magnólia” volta ao tema da agricultura celestial e volta a citar Paracelso que dizia ser a magnólia a primeira flor a surgir em nosso planeta.

A próxima faixa é uma das únicas que não evocam temas místicos ou científicos, é um descanso conceitual, uma pausa para respirar e se apaixonar: “Minha teimosia é uma arma para te conquistar” foi um dos grandes sucessos radiofônicos do disco e tem um contraponto sensacional no coro masculino que acompanha a voz de Jorge.  Os Golden Boys arrasam

“Zumbi” é uma aula sobre a história da escravidão listando os lugares de onde negros eram tirados à força e as práticas da venda de seres humanos, mas avisa: quando Zumbi chegar o bicho vai pegar, afinal: “...Zumbi é o senhor das guerras/o senhor das demandas/ quando Zumbi chega/ Zumbi é quem manda.”.

“Brother” é um gospel que não faria feio em qualquer igreja americana. “-Jesus Christ is my lord/Jesus Christ is my friend”.
Embalada pelo violão e as batidas dos pés do cantor para marcar ritmo. Serve também como forma de afastar a alquimia – na visão popular brasileira – das ciências ocultas e liga-la a uma ação evolutiva de luz, não de trevas.

O que pode parecer apenas uma piada engraçadinha “O namorado da viúva” é na verdade uma homenagem ao alquimista mor Nicolas Flamel, que teve a “coragem” de se casar com Perrenele, uma viúva muito rica – e segundo a canção, boazuda – que já havia enterrado três maridos. A musica é um dos pontos altos da obra.
Aliás, são de Flamel também as ilustrações que compõe a capa do disco e estão incrustadas na cripta onde descansam os restos mortais do alquimista na igreja dos Santos Inocentes em Paris.

“Hermes Trismegisto e sua celeste tábua de esmeraldas” é uma homenagem a Toth, sumo sacerdote da comunidade Khen, que teria se salvado do afundamento de Atlântida e teria sido confiado a ele a guarda da Tábua de Esmeraldas que contem a sabedoria de todas as eras.
Em tempo: Trismegisto quer dizer “três vezes grande”.

“Cinco Minutos”, que parece – só parece – uma cena do cotidiano de um desencontro em que a amada se recusa e esperar por mais cinco minutos o seu par é na verdade uma mensagem do autor que frisa “você não sabe quanto valem cinco minutos” lançando luz sobre o valor do tempo para a realização da obra de cada um.
Jorge voltaria a falar de alquimia em pelo menos mais dois discos posteriores, os ótimos: Solta o Pavão e África Brasil, mas pedra fundamental (e filosofal – para não sair do tema) é este Tábua de Esmeraldas.

Comentários

Alexsander disse…
Como pode um artista fazer uma obra magnífica dessa, que fala de assuntos que gosto muito e acredito, e eu não conhecer?
É, ainda tenho que aprender a nao fazer julgamentos pelo estilo que a pessoa leva.

Agradeço por me apresentar esse magnífico artista que nunca havia parado para ouvir por juízo errado meu, e parabéns pela bela análise desse disco.

Abs
Paulo Levi disse…
Não conhecia essa gravação do Jorge Ben/Benjor/Ben, deu vontade de ir lá no iTunes e baixar.Obrigado por me apresentar a ela, e parabéns pela excelente resenha!
Edison Guerra disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Edison Guerra disse…
Tenho este LP até hoje! Me presenteei no lançamento em 1974 quando fiz 17 anos. Ainda ouço na "vitrola" em casa ou no pendrive no carro. Todas as faixas são sensacionais e agora para mim tem outro significado com as suas explicações das homenagens!
Anônimo disse…
Conheço. O disco e, quem diria, ele ! Rapidamente. Jogando bola com amigos, no clube do Fra, de repente, escutamos, da beira de um campo de society, de terra:' o homem mandou fazer: overlapping, overlapping '! A pelada parou.E fomos conversar com ele. O 'homem' é o saudoso Claudio Coutinho e overlapping( parece F1...), a jogada inventada por ele. Jorge Ben Jor é o flamenguista mais gente boa que existe. Um músico genial. Digamos que, escutando Jorge Ben, você ainda 'sente' o Rio de Janeiro e conhece um carioca de verdade. Legal.
Sampa não é mais o 'túmulo do samba'. É, agora, a Nimbo-cúmulo do samba. Chove muito por aí.
Salve Jorge !



M.C.L.