Gildo

-Então é pra cá que a gente vem quando morre?
-Não, na verdade não... Você não morreu ainda, o paramédico está tentando te reanimar.
-Então?
-Bem... Deixa eu explicar...

Gildo tinha acordado pela manhã e como sempre nas Segundas-feiras estava atrasado.
Pegou a roupa em cima de uma pilha que estava dobrada, se vestiu às pressas e saiu correndo.
Ao chegar ao ponto de ônibus lembrou-se de checar algo que lhe amedrontava: que roupa íntima estava vestindo.
Em seus piores pesadelos era atropelado e quando chegava ao hospital, para que lhe fizessem curativos lhe tiravam as roupas e descobriam que ele estava de calcinha e não de cueca.
Geralmente acordava aos berros, transpirando litros e tinha de ser acalmado por sua esposa.
A paranoia era tanta que sua gaveta de cuecas ficava em uma cômoda separada do guarda roupas do casal.
Naquele dia, estava tudo em ordem. Até freada tinha.

-Quando se morre sem resolver algum assunto na Terra, vem para cá: o limbo.
-E como sai daqui?
-De duas, uma. Volta e resolve lá ou fica aqui pra sempre. Mas tem que decidir logo, se não o médico lá desiste e te dão por perdido.
-Então tem como voltar?
-Tem, mas esbarra nesta burocracia.
-Burocracia... Pensei que isso era coisa do inferno.
-Não pô... Pra ir pro inferno é direto. Sem escalas.
-Mas eu não tinha nada pra resolver.
-Tinha sim... Tinha que enfrentar seu medo.
-O que? Ser atropelado? Eu fui, oras...
-Mas não estava de calcinha. – e contém o riso.
-Mas nem! Eu sou muito macho.
-Bom... É o seguinte...
-Diz.
-Tem que decidir agora. Vai...
-Eu fico aqui.
- Pensa bem... Não vai ver ninguém, não vai falar com ninguém depois de eu sumir. Aqui não tem cerveja, não tem futebol, não tem mulher, não tem rock, não tem nada...
 -Hum... É. Bem chato.
-Pois é. Então volta e...
-Não.
-Deixa eu terminar... Você volta até a manhã antes do fato... Vai ser atropelado, tudo de novo, mas vai resistir e viver por mais algum tempo.
-E você pode fazer isto? Você é Deus?
-Chame como quiser... E então? O que decide?
-Quanto tempo?
-Se interessou heim? Mas o tempo eu não vou dizer.
-Hum... Não... Nem ferrando. Já disse, sou macho.
-Eu já te disse que todas as suas vontades e angustias vão continuar com você aqui?
-Ah é?
-É... Isto aqui pode ser pior que o inferno viu...
-Bem... Eu vou pensar e...
-Pensar nada... Tem que resolver agora, to vendo na tela do computador aqui que o paramédico ta quase desistindo.
-Tá bom, eu volto.
-Ok... Vai, vai, vai...

E então Gildo acorda. Como sempre nas segundas está atrasado.
Levanta-se às pressas, pega sua roupa em uma pilha que estava dobrada, para em frente à gaveta de roupas de sua esposa e sente uma vontade enorme de vestir uma de suas calcinhas.
Olha para os lados como se verificando se não há ninguém vendo e escolhe uma preta. Na verdade apenas dois fiozinhos. Um na cintura segurando o tapa-esfiha e outro atrás.
Veste e logo coloca a calça jeans por cima. Coloca a camisa, os sapatos e corre para o ponto de ônibus.
Nem sequer chega a atravessar a rua. Um Corcel amarelo o atinge e o arrasta por um bom trecho da rua.
Alguns minutos depois chega a ambulância e a primeira providencia do paramédico e lhe tirar os frangalhos de roupa que lhe cobriam os machucados e dificultava o atendimento.
Profissional, não comenta e nem sequer internamente ri, mas infelizmente, não consegue reanimar Gildo.
No velório não havia outra conversa que não fosse a calcinha. Se estivesse vivo, morreria de vergonha.

Então chega ao limbo e encontra o mesmo ser que lhe havia feito a proposta de volta e este, com um sorriso mofino e sacana diz:
-Com tanta calcinha enorme na gaveta você tinha que pegar logo aquela?
-Não vem não, você me enganou, disse que eu resistiria. Me enganou...
-Mas você também não foi sincero. Por isto está aqui.
-Como não? Sempre disse que morria de medo, tinha pesadelos até, de morrer e estar com uma calcinha.
-Disto eu não duvidei, nunca, mas ficou aqui se dizendo machão e tal... Fio dental Gildo? Logo fio dental?

Comentários

Anônimo disse…
Análise de um conto !
Por Moleque Chatto Mula Da Silva.

. Pô. 'freada' e na gaveta ! Um parmerense ! Eu lavo as minhas 'freadas' e depois vão para máquina de lavar... sou limpinho.
. Boa. Para ir ao paraíso tem burocracia. Inferno, não. Ora, bolas, EUA, tem. Brasil, tem ?
. Como no paraíso não tem nada disso ? Não tem F1 ? Me disseram que anjos voam rapidinho. Melhor que GH-3, Fofonso, Vettelino. E tem cada 'anja', mermão...Mas é como bar de stripper americano. Não pode tocar. Só ver. Mas é de graça. Não precisa pagar. Qualquer bobeada, inferno ! Rock não tem mesmo, não. Só música sacra, graças a Deus ! Caramba, quero descansar e ouvir o bonezinho do AC/DC gritando nos meus ouvidos ? Tá maluco ? Vá pro inferno !
. Não se fala com Deus. Santa Inguinorança ! Só seres muito especiais escutam Deus. Moisés, por exemplo.
. Uma falha. Um dia ele terá que voltar... Vai brigar com quem 'sabe lá quem será'? Eu, hein ? Na mesma situacion, ficava pianinho. Bom, ele irá pensar. Não tem ideia do que é o inferno e acha que é aquilo que a mídia moderninha conta. Nem eu sei mais fico com o bom e velho Dante ! Não tem bonezinho do AC/DC para cantar nos teus ouvidos. Tem a Tina Turner nos seus melhores dias. Sem parar.
. Sabia ! Via..! Enrustido.
. Mofino ? Êpa, palavra nova ! Não tão nova assim... Google e... tá.

nota do conto: 8, porque ri. O restante 1,99 não aparece porque a foto do cara é horrível ! Depois de um lauto(êpa !) dejejum(êpa ! Desjejum seria mais chique), ver isto, foi Bangu 8 prá caramba ! Pior que a careca do Eike, tá ligado ? Parece uma morsa careca ! Nojento ! Nem os aviões da esquadrilha da fumaça ajudaram. Deve ser na França... vermelhinha ! Avec-culotte ! KKKKKK ! Sentiu a piada ? Culotte ! 'avec-culotte', sans-... !

HA !


M.C.
Rubs disse…
Muito bom. Eu me lembro desse conto também. Não tinha essa figura grotesca, mas tudo bem.
Então isso é o limbo? E o Gildo tá lá? Pura cascata! Conheço uma só pelo cheiro. O Coyote vai e volta a todo momento no limbo e ouvi ele dizer que lá é uma mistura de prazer e desprazer, como aqui mesmo. Por que haveria de ser diferente? Como ele é um tucura brutalhudo, o limbo fica na maior bruteza quando ele vai. Aí, ele acaba voltando.
Mas você é muito bom Ron Groo. Quer dizer, não somente literariamente, mas moralmente bom. Acolhe a todos indiscriminadamente.

Abs
Manu disse…
Depois imagem final, fiquei com medo do limbo rsrsrsrsrs...

Abs!
Marcelonso disse…
Groo,

Literalmente, a visão do inferno!


abs
Anselmo Coyote disse…
Quem pega o bonde andando e quer sentar além de cometer uma fala de educação enorme sempre acaba caindo. É o caso de do rutuba Rubs Cascata. Ele não sabe que quem pavimentou a estrada para o limbo foi o próprio blogueiro que disponibilizou até uma maquininha onde os interessados ou obrigados podem tirar a moedinha para o barqueiro.
O conto? Ora, como sempre, relê-lo é impagável.
Abs.