Se os olhos não podem ver...
Tinha alguma coisa errada demais no ar.
Faltavam apenas quinze minutos para o fim do expediente e ainda nada tinha dado errado.
Dias assim são raríssimos e costumam preceder verdadeiras tragédias profissionais.
Este era o medo.
A vontade de que algo desse errado naquele dia era tanta que chegávamos a fazer pequenas sabotagens, mas mesmo assim tudo corria bem. Demais até.
Ficávamos imaginando, cada qual em seu canto e sem contar ao outro o que poderia dar errado nos dias seguintes se aquela segunda feira terminasse sem que algo de estranho acontecesse.
Para ter-se uma idéia do grau de estranheza que nos rodeava basta dizer que de um momento para o outro até o drive de cd´s do computador voltara a funcionar. Ele que nem sequer abria a gaveta para que pudesse recuperar o disquinho do Eric Clapton que estava lá dentro havia pelo menos seis meses.
Do nada, como que por encanto a gaveta abriu, entregando de bandeja o objeto prateado.
Aproveitando o ensejo, recolocaram o mesmo na gavetinha e pressionaram o botão para fechar. Em ato continuo a musica encheu o ambiente, alegrando-o.
Pensamos que aquilo talvez pudesse ser bom sinal, e não mau agouro como imaginávamos.
De repente poderia representar o inicio de um novo tempo, sem as zic ziras tão comuns dentro do escritório.
Sorrimos. É... Porque não?
Eis que antes que a terceira musica começasse a tocar, um vulto surge no balcão, deformado pelo vidro canelado do aquário. Bate no balcão com certa impaciência.
Quem estava agora sentado em um dos banquinhos e com os braços apoiados no balcão era um senhor de nome Pedro Luiz Barboza, mas que atendia a todos apenas por ‘seu’ Barboza.
Homem alto e forte. Aparentava ter menos idade do que tinha.
Estabilizado na vida, era dono de varias casas em diversos bairros da cidade, todas ocupadas e com os aluguéis rigorosamente em dia. Era também dono de uma pequena frota –cinco- de carros da marca Gurgel, com uma curiosidade à parte. Todos cinco eram veículos modelo X12.
Uns com capota rígida e outros de lona, mas todos em perfeito estado de conservação.

Outra curiosidade?
‘Seu’ Barboza era cego. Não era cego de nascimento, havia ficado cego aos vinte e poucos anos por conta de uma infecção adquirida no trabalho. Tudo que tinha agora, inclusive os carros, eram frutos da vultosa indenização a que tivera direito.
Mas... Para que serve uma frota de carros a um sujeito que não pode dirigi-los?
Oras! E para que dirigir se ele podia pagar para que fizessem isto por ele?
Sim, ‘seu’ Barbosa tinha um motorista particular.
Na verdade era o marido de sua irmã, burro como uma porta e que ao que diziam só tinha CNH porque o cunhado havia comprado para ele. Especulava-se até que fosse analfabeto.
O fato era que o homem estava agora no balcão e só agora, faltando menos de dez minutos para irmos embora encerrando assim a segunda feira é que nos dávamos conta de que não havia nem sido dada à entrada nos documentos junto ao órgão de transito da cidade.
Uma ‘comida de bola’ gigantesca já que os documentos em questão estavam em poder do escritório a pelo menos cinco dias. E ninguém sabia dizer por que carga d´água não tinha sido tocado em frente. Ou seja, não havia uma explicação convincente para ser dada à ‘seu’ Barboza.
E pior... Toda vez que ele telefonava perguntando sobre a documentação, quem atendia lhe dizia que já estava para ficar pronta. Sem ao menos procurar o processo.
Agora o homem estava pessoalmente ao balcão para pegar o documento que, calculava ele, já estava pronto.
Diante da duvida se estava pronto ou não, ele se enfureceu. Óbvio... Reclamou muito e soltou a perola:
-Só saio daqui depois de ver o documento.
-Então ferrou! – disse alguém.
-Por quê? O documento não tá pronto?
-Também, pode ser...
-E o que mais?
-Bem... É que mesmo que estivesse pronto...
-Nem continua! Nem continua...
Um grande impasse estava criado. O que fazer? Já estávamos fechando as portas de vidro e ele sentiu os movimentos neste sentido e se agarrou na ponta do balcão e reiterou:
-Não saio daqui sem o documento.
Então alguns dos cinco espíritos de porco que lá trabalham teve a genial idéia de dar ao homem qualquer documento que estivesse à mão. Ele não poderia ver mesmo para conferir e assim, ainda por cima, descobririam se o cunhado/motorista era mesmo analfabeto.
-É arriscado, mas é melhor que um bate boca no balcão.
E assim foi feito.
‘Seu’ Barbosa, convencido de que o documento estava sendo entregue era mesmo o seu agradeceu e foi embora.
O cunhado/motorista olhou o documento e também agradeceu.
Detalhe: Leu o documento segurando-o de cabeça para baixo.
Acharam maldade? Deveriam ver o que foi feito e dito quando, uma semana depois o homem voltou ao balcão reclamando que seu carro havia sido preso por conta de não estarem eles portando o documento do carro e sim, segundo a autoridade de trânsito os documentos de um caminhão.
Mas isto é história para outra crônica...
Comentários
hauhauauh
Quanto aos posts estão sensacionais,você nunca deverá parar é uma ordem.
abs
No meio jornalístico, dizem que é culpa dos deuses do fechamento. Quando alguém diz algo como "só falta colocar as fotos na página", ou "só falta eu checar a resposta da assessoria", os deuses do fechamento se irritam.
Quero só ver a "M" que deu depois.
"-Só saio daqui depois de ver o documento" foi ótimaa.
Abraços!
Leandro Montianele
Tu sacaneia até o prefeito!
AHAHAHAHAHAH!! Abraço!
Brigado Joel, e eu não pretendo parar tão cedo...
Deuses malvados estes Médice, e eu nem sou jornalista (ainda).
Valeu De Genaro!
Um dia eu conto Priscila.
E foi deste jeito mesmo Leandro.
Depois que um padre mandou uns e outros pro inferno Marcão, acho que não vão mesmo.
O prefeito foi involuntário Savio, já o cego não. hehehe