Folia do Boi

Eu não me lembro direito dos detalhes, nem poderia já que faz tanto tempo...
Lembro-me de alguns pontos, alguns fatos um tanto confusos.
Os anos, outras presepadas e as dificuldades da vida me fizeram esquecer muito.
Só que outras teimam em ficar grudadas no hard-disk da memória. Enfiadas numa pasta de raiz no cérebro. Coisas que mesmo se quisesse esquecer não conseguiria.
O que vou narrar agora é um destes fatos. Como já disse, meio impreciso por conta dos brancos na memória, mas vou contar assim mesmo...
Era quase uma obrigação jogar futebol no campo de terra do bairro nos sábados pela manhã.
Na verdade era religioso e nós cumpríamos com um prazer absurdo esta obrigação.
Lá descansávamos da semana de trabalho. Correndo, suando e até xingando uns aos outros dentro de campo, mas quando acabavam as partidas todos eram amigos de novo. Ficava o dito pelo não dito.
Acordávamos cedo e íamos de casa em casa acordando os jogadores até que tivéssemos o numero certo pra jogar.
Os mais assíduos eram - graças a Deus - o goleiro Sandro, que chegou até a fazer uma temporada pelo time do Nacional da Água Branca; o lateral Sergio, também conhecido como "Babu"; o outro Sérgio, que era atacante e não era muito bom de bola. Mas era amigo e amigo não tem defeito, não é?
Ocorre que num daqueles sábados tínhamos jogo marcado contra um time do bairro vizinho. O jogo foi marcado de véspera, muito em cima da hora e não tivemos tempo de avisar pelo menos treze jogadores. De modo que na hora 'H' só apareceram onze, os contados...
Tivemos que improvisar.
Colocamos gente do ataque na defesa, laterais no meio campo e só guardaram posição o goleiro Sandro - de novo, graças a Deus - e o Sérgio centro avante.
Até porque ele, como já disse, não era lá estas coisas e era melhor mesmo que ele ficasse lá na frente e não atrapalhasse a defesa...
Aos dez minutos de jogo alguém chega a beira do campo e grita que o filho de um de nossos jogadores havia nascido não tinha nem uma hora.
Não me lembro quem exatamente, mas o cara nem vacilou. Tirou a camisa passou por mim como um foguete. Nem ouviu os parabéns... Deixou a camisa no chão e mais à frente o calção.
Passou atrás das traves de um dos gols, vestiu sua roupa e sumiu.
Ficamos sem um dos volantes no meio-campo e sem ninguém em vista para por no lugar.
Teríamos de adiar o jogo. O que desagradou todo mundo nos dois times.
Eis que surge do lado oposto do campo um outro amigo nosso: Luiz.
Não era nem um craque de bola. Na verdade era o que chamavamos de "pereba".
Alguém, julgo eu do time adversário, o viu e gritou para que o colocássemos no lugar do feliz pai fresco que havia desertado.
Claro que a idéia a principio não foi bem aceita, afinal era o Luiz e sendo assim não ia fazer diferença ele no time ou um a menos.
Tremenda maldade.
A confabulação até que foi rápida e na base do sem jeito.
Aceitamos Luiz no meio campo.
Ah! Mas não foi assim fácil não!
Primeiro tememos pelo seu futebol, claro. Depois o mais grave, tememos pelo nosso uniforme. Não que nossa gloriosa camisa fosse algo assim bonito. Na verdade era até ridículo.
As camisas listradas na horizontal em verde e cor de abóbora. E os calções? Estes eram listrados na vertical com as mesmas cores.
Era o que tínhamos.
Não disse que tem coisas que mesmo querendo não esquecemos?
E Luiz, devo dizer, não tinha assim um corpo digamos... Atlético.
Para ter uma pálida ideia, o cara tinha o singelo apelido de 'boi'.
Sim, ‘boi’, ele era grande (gordo?) então ai nosso temor pelo uniforme.
Mas vá lá que seja... Se a camisa ficasse folgada depois no corpo de outro jogador, paciência.
Mas, e o calção? Se este laceasse de mais? Como fazer?
"-Bom aí é o seguinte..." - alguém dava a solução. - "- Dá ai a camisa e ele que jogue com a própria bermuda...!”.
Boa solução se ele não estivesse vestido com calça jeans.
Alguém gritou de longe: "-Joga de cueca!".
O jogo foi reiniciado e transcorreu na maior ordem.
Ganhamos, como aliás, já era esperado.
Luiz jogou muito bem. Antecipando, caindo para os dois lados do campo, cobrindo os laterais com perfeição e até chegando ao ataque.
Não importa se os “língua-afiada”, as “bocas de veneno” dissessem depois que o "Boi" mais parecia uma bola de praia atrás de uma bola de couro.
O que importa na verdade é que cumprimos nosso ritual e todos saíram contentes. Principalmente Luiz que lá no meio campo, enorme... Rotundo... Bovino... No bom sentido! Com nossa camisa cinco apertada até não mais poder e à altura do umbigo, meião e chuteiras emprestadas...
E se me perguntarem - e me perguntam - se é verdade que ele ficou em campo com uma cueca de algodão cru? Eu direi - e digo - que não me lembro.
Se havia mesmo uma manchas de cor escura? Não sei.
Como diz meu grande amigo Silvio, irmão do goleiro Sandro: "No creo em bundas, pero que las hay, las hay!".
Mas eu não quero me comprometer e penso ter sido tudo uma alucinação provocada pela alegria da vitória.
Ponho a culpa nos brancos da memória...

Comentários

Eu sempre fui o "Sergio Centro avante" nunca passei disto, uma vergonha na minha carreira futebolistica encerrada o ano passado.....kkkkkkk, afinal de contas vc jogava em que posição
Unknown disse…
o herói do dia foi convidado alguma outra vez a jogar? ja sei, você não lembra.
Anônimo disse…
Rapaz, mas que história, confesso que lendo não imaginei que vencer fosse algo esperado, principalmente com a substituição, e não sei porque imaginei um uniforme azul quando o jogador corria para a maternidade !!!!!!!!

RE: se você digitar "Regras do Beisebol" no Google vai achar muita coisa, e a primeira opção não é a melhor, livros não me recordo de nenhum mas garanto, mesmo lendo e relendo várias vezes, você não conseguirá compreender tanto quanto vendo na TV, principalmente com narradores brasileiros explicando as regras conforme as jogadas vão acontecendo, eu particularmente acho o jogo absurdamente fantástico, assim como Futebol Americano..... se quiser pode me perguntar algumas coisa, além do básico tem inúmeros detalhes.
Felipão disse…
Bom...

Modéstia parte eu jogava muito bem no gol. E, por uma enorme coincidênica, no time da faculdade, cruzei com um cara que também jogava no Nacional da Barra Funda também. Lógico, ele era o titular...
Brun@ disse…
"No creo em bundas, pero que las hay, las hay!".

Adorei Groo xD

Bem...Isso me lembra minha infância pouco usual de passar tardes de domingo inteiras na rua da casa da minha avó que fechava pra chamada "Área de lazer" [guardo uma saudade sem tamanho desse tempo], ficava descalça e jogava futebol com o pessoal que aparecesse.

Eu gostava de ser goleira, até no colégio XD

Fui bem 'moleca' confesso, mas dá uma saudade boa de lembrar de certos momentos desse tipo.
Marcelonso disse…
Mestre Groo,

Bons tempos,sem preocupação,sem grandes responsabilidades.

abraço
hahahaha... bons tempos.

eu so meio pereba... ñ so gordo, mas ñ jogo porra nenhuma shauahsusahuhsa

Seus contos sempre são muito legais Groo!!!
Anônimo disse…
Caro Ron:

Vou começar pedindo desculpas pela extensão do comentário. Todavia, acredito que se divertirá com a leitura (é provável, contudo, que já tenha lido o texto), pois tem algo a ver com esse ótimo conto.

É um texto de Roberto Pompeu de Toledo.

O título é: Geração "on"

"Estamos diante de um fenômeno de massa: o povo
brasileiro, maciçamente, anda preferindo dar nomes
terminados em ‘son’ e ‘ton’ aos filhos homens"

A seleção da coluna entrará em campo para o próximo compromisso com a seguinte formação: Glédson; Joílson, Halisson, Acleisson e Richarlyson; Vanderson, Kléberson, Glaydson e Taison; Wallyson e Keirrison. No banco de reservas ficarão Wanderson (goleiro), Jadilson, Maylson, Leanderson, Cleverson e Roberson. A seleção adversária, armada no três-cinco-dois, se apresentará com: Weverton; Adailton, Heverton e Welton; Arilton, Cleiton, Éverton, Uelliton e Neilton; Washington e Elton. Os reservas serão Dalton (goleiro), Erivelton, Hamilton, Wellington, Hélton e Jailton.

Primeiro aviso ao leitor incauto: os nomes são todos verdadeiros, de jogadores em atividade no futebol brasileiro. Segundo aviso: se os mais distraí-dos ainda não perceberam, o embate acima dá-se entre os nomes terminados em "son" contra os terminados em "ton". Nomes em "son" e "ton" hoje abundam, nos gramados, como estrelas no céu. Tempos atrás, mais característicos eram os apelidos de duas sílabas, Pelé, Didi, Dida, Pepe, Telê, alegres e infantis. Os terminados em "son" e "ton", ao contrário, são nomes severos, que evocam chefes guerreiros. Tanto eles se multiplicam que para escalar as seleções não foi preciso ir além de um restrito universo. Na grande maioria, são de jogadores dos times da primeira divisão do Campeonato Brasileiro, com apenas alguns poucos reforços – afinal, Weverton, goleiro do Vila Nova, de Goiás, não merecia ficar de fora, nem Acleisson, volante do Mirassol, clube do interior paulista.

A questão é: por que a pesada preferência pelos nomes em "son" e "ton"? O futebol não é um universo fechado. Ele espelha a sociedade brasileira. Mais exatamente, espelha as camadas mais populares da sociedade. O que leva a concluir que estamos diante de um fenômeno de massa: o povo brasileiro, maciçamente, anda preferindo dar nomes em "son" e "ton" aos filhos homens. Complexas e misteriosas são as razões pelas quais um nome, ou uma classe de nomes, entra ou sai de moda. É tarefa para antropólogos e sociólogos. Modestamente, enquanto se espera por mais doutas explicações, o que se pode é especular.

É de supor, em primeiro lugar, que quem pespega no filho os nomes de Wallyson ou Leanderson espera do interlocutor reação que vá além da indiferença. Afastemos desde logo, no caso do "son", ter sido ele importado dos costumes nórdicos, em que a terminação "son" (ou "sohn" – "filho", em inglês, alemão e línguas afins) identifica o filho de alguém de nome igual ao contido nas sílabas precedentes. É improvável que Leanderson signifique "filho de Leander" ou que Wallyson signifique "filho de Wally". Parece ser mais o caso de criações livres, movidas pelo gosto da invenção. Keirrison, artilheiro do Palmeiras, contou à revista Veja São Paulo que deve seu nome à preferência do pai pela letra K, combinada à admiração pelo beatle George Harrison. Keirrison tem um irmão chamado Kimarrison, de novo com K, e dessa vez homenagem do pai, roqueiro incorrigível, a Jim Morrison. Como Harrison e Morrison viraram Keirrison e Kimarrison, isso fica por conta da peculiar alquimia que rege a produção de nomes no Brasil.

Ao lado do gosto da invenção, a queda pelo estrangeirismo é outro traço que se adivinha nos pais dos "son" e dos "ton". São nomes que soam estrangeiros. Por coincidência (ou não?), as terminações em "on", tanto no inglês quanto no francês e no espanhol, correspondem ao "ão" português. Entre outros milhares de exemplos, action, em inglês e francês, e acción, em espanhol, dão em "ação" em português. Ora, o "ão" é o som mais típico da língua portuguesa, terror dos estrangeiros que o tentam imitar. Fugir do "ão", como se faz, mesmo inconscientemente, quando se opta pelo "on" é negar a língua portuguesa como nem São Pedro negou Jesus Cristo antes que o galo cantasse.

O gosto da invenção, somado à queda pelo estrangeirismo, colabora para a hipótese seguinte: a escolha dos nomes Kléberson ou Richarlyson, Welton ou Arilton, trairia o desejo de, com o fermento de toques originais e estrangeiros, prover o filho de uma personalidade forte e única. Não, ele não haverá de ser um zé qualquer, nem um joão-ninguém. A ironia desta história é que, em contraponto à tendência pelos "son" e "ton" nos estratos populares, nas classes altas vigora a tendência oposta. Lá reinam os Josés e os Joões, Antônios e Franciscos, como fazia décadas não se via. Tal qual em outros campos, um Brasil vai para um lado, o outro para a direção inversa.

Espero que tenha gostado.

Forte abraço.