Conto de natal - Desejos são desejos...

Sempre que ia passear na região do Parque Dom Pedro, em São Paulo, ficava encantado com os armazéns importadores de secos e molhados. Desde muito pequeno.
Os aromas, a variedade de produtos como azeitonas, azeites, vinhos, vinagres, queijos e principalmente: mortadelas.
Mas não de uma forma comum, encantavam mais pelo fato de estarem dependuradas no teto.
Passava por baixo das “bexigas” de mortadelas e peças de queijo provolone enormes sustentadas apenas por um cordãozinho. Porém o sentimento que tinha não era de medo. Não temia que uma das peças despencasse lá de cima e acertasse sua cabeça, mas um troço confuso. Queria agarrar uma das peças e arrancá-la. Sair correndo do armazém com a mortadela nas costas.
Óbvio que não precisava disto, nunca precisou.
Se pedisse quando criança, provavelmente, seu pai teria comprado uma delas e lhe daria de presente. Um presente não convencional, mas um presente.
E agora, depois de crescido, já formado e muito bem empregado, uma peça de mortadela que custa noventa reais não lhe seria problema comprar. O que queria era realizar aquele sonho louco de infância que nunca contou a ninguém.

Naquele natal teve a idéia que alguns chamarão de brilhante, outros de “coisa de jerico”: iria até um dos armazéns que costumava visitar quando criança e colocaria seu plano em prática.
-Boa tarde, posso ajudar?
-Pode sim, eu quero mortadela...
-Senhor, desculpe... Não vendemos fatiados.
-Não, não... Eu quero uma peça inteira.
-Ah sim... E qual?
-Pode ser desta aqui... – aponta com os dedos.
-Bologna ouro defumada... É uma ótima escolha... Vou pegar a faca para tirar ela daí.
-Olha não... Desculpa, mas eu quero arrancar do cordãozinho, e sair da loja com ela sem embrulhar.
-O senhor quer roubar a mortadela? É isto?
-Não... Eu vou pagar... Aliás, quanto custa?
-A peça toda? Noventa e seis reais... É um produto importado da Itália.
-Que bom... Que bom... Então... Eu vou pagar, mas quero eu mesmo arrancar ela daí e sair com a peça sem embrulhar.
-O freguês é quem manda.
-Aceita cartão?
-Claro, claro... Crédito ou débito?
-Débito. Aqui está.
O funcionário do armazém faz a operação e com um sorriso lhe aponta a peça de mortadela que agora pertence ao freguês.
-Só mais uma coisa... O senhor pode fingir que está distraído?
-Como?
-Fingir que está distraído... Assim, sei lá... De costas, olhando para a janela...
-Bem... Tá certo. Já começamos com a loucura, vamos até o final, não é?
Vira e se ocupa com a limpeza das garrafas de azeite extra-virgem em uma bancada mais afastada, mas não sem, de vez em quando, dar uma olhada no maluco.
Maluco, aliás, que tentava de todas as formas arrancar a mortadela de seu cordão sem sucesso. Puxava com calma, depois nervosamente, com fortes trancos e chegou até mesmo a se dependurar nela.
Mas nada... Continuava presa a seu forte barbante e pendurada ao teto.

-O senhor quer uma ajuda?
-Acho que vou precisar. Do que são feitos estes cordões? Aço?
-Não, não... Acho que é de algodão cru, mas não sei...
O homem estava abraçado à mortadela como um goleiro que encaixa uma bola.
-O que pode fazer?
-Bom, posso pegar uma faca e dar um talho no cordão. Não cortar ele todo, mas dar um trisco nele, assim acho que fica mais fácil de sair se o senhor puxar com força.
-Tá! Eu aceito.
E o funcionário pega sua faca e dá um pequeno corte no fio. O homem então põe as mãos na mortadela e ameaça puxar, mas se detém.
-O que foi? Tem que cortar mais?
-Não, acho que não... Mas... Queira se distrair por favor? – diz ele com um sorriso.
-Ah... Tá... Tá... Tenha um feliz natal e um próspero ano novo. – e se vira para continuar limpando as garrafas.
O homem se agarra à peça e força com seu peso todo para baixo, chegando mesmo a tirar os pés do chão e ficar dependurado junto com a mortadela até que por fim o cordão cede e o homem cai sentado no chão. Mas com a mortadela junto ao peito.
Então se levanta, desajeitado e dolorido, abraçado à peça e sai da loja como se fugisse.
Do outro lado do balcão o atendente sorri pensando que um dia morre, mas não vê tudo.

Ao chegar a seu carro, um bonito sedan importado, abre o porta malas e joga lá dentro sua aquisição. Seu presente de natal para si próprio.
Entra no carro onde lhe espera sua esposa e lha dá um grande abraço e um beijo.
-Amor, cê demorou... Todo este tempo para escolher uma mortadela?
-É que são tantas! – e sorri satisfeito.
-E que horror... Você esta cheirando a mortadela! Como foi que escolheu? Abraçando?
Ele não responde. Apenas sorri enquanto vai acelerando o carro pela Avenida. Senador Queiroz enfeitada para homenagear o bom velhinho.

À todos os amigos e leitores um Feliz Natal e toda a paz daquele a quem o natal é dedicado.
São os meus votos e de toda a família Groo.

Comentários

Tohmé disse…
Tenho a ligeira impressão de que uma dessas realmente caiu em sua cabeça, quando você tinha uns 7 anos de idade.

Feliz Natal e um 2011 mais insano ainda.
Fábio Andrade disse…
Eu tô com o Tohmé, hehe. Mas que bom que uma dessas caiu na sua cabeça. A blogosfera ganhou seu membro mais comédia.

Feliz natal, maninho. Tudo de bom pra você e família.
andreh disse…
Bom eu não vou contrariar a galera, que caia uma mortadela, um provolone, dez salames...

Ansioso esperando as insanidades de 2011!!!
Feliz Natal e um Ano Novo cheio de contos e rádios onboard!!!
Anselmo Coyote disse…
Groo,

Depois volto para comentar.

Abraço.
Concordo com o causídico Thomé, nada mais Natalino na Zona Cerealista do Mercado, do que andar com uma mortadela debaixo do braço....Abs e ótimo Natal a vcs todos.
Que estória com os pés na cabeça! hahaahahaahahaaha...

Groo,

Um natal Fantásticho, cheio de alegrias e que o Menino Jesus possa iluminar o seu lar sempre com a luz divina e te cubra de graças por todos os anos vindouros.

abração.

ALYSSON PRADO "BALO"
Marcelonso disse…
Groo,

Sei não, mas tô achando que conheço esse "maluco"...
Por acaso ele não gosta de escrever?

Excelente o conto, aliás como de costume.

Desejo um excelente Natal, com muita paz a harmonia, e que 2011 seja um belo ano a todos.


grande abraço
Marcos Antonio disse…
hahahaa groo acho q esse aí eu conheço tb! hahaha ri horroes com a história! ótimo natal amigo, td de bom pra vc e pra sua familia. bj na Val e nas crianças!
Anselmo Coyote disse…
Acho que esse rapaz .... deixe pra lá, é melhor. rsrsrs.

Groo,
Não sei comentar um conto desses, desculpe-me. Vou apenas que é bom demais da conta e tem uma pitada de todos os aspectos do espírito humano.

Grande Groo, só vc para conseguir de forma tão genial.

Um grande abraço, meu amigo e um Feliz Natal.

E, a todos os demais colegas, desejo o mesmo. Um grande e muito feliz natal.

Abs.
Anônimo disse…
... e M.C., o Grinch da Internet: Um bom Natal para todos.
Paulo Levi disse…
Groo, nesse conto você caprichou nos ingredientes: mortadela, memórias da infância, fantasias de transgressão...

Se eu fosse um analista freudiano, diria que o tal cordão é um cordão umbilical. E se eu fosse um analista inglês, diria que a fantasia de sair correndo com a mortadela revela um desejo reprimido de jogar rugby. Mas como eu não sou nem analista, nem freudiano e nem inglês, apenas agradeço por mais uma história muito bem contada, e desejo a
você e a todo o clã dos Groo um Feliz Natal e um excelente 2011!
Joel Gayeski disse…
Esse texto parece que foi contado por um amigo meu cujas histórias engraçadas, plahaçadas e micos sempre foi "o meu primo" que era o protagonista.
De qualquer forma, ótimo texto, fico imaginando o qüera pendurado na mortadela.

Feliz natal!