Contos do botequim 11 - Tradições

 Canário passava sua flanela engordurada no balcão enquanto em uma das mesas, Andrade, o professor aposentado e Derico, o fiscal da natureza conversavam de forma entediada.
-Nem parece que está chegando o natal. – diz Andrade
-Parece sim, a cidade já está enfeitada... – retruca Derico.
-Mas este calor do Saara...
-Professor... Nunca vi o senhor falando palavrão!
-E que palavrão eu falei?
-Calor do Saara! Fiquei até corado.
-Ficou corado porque é sem vergonha.
-Eu? Eu tenho vergonha.
-Devia ter mais... Devia ter vergonha de ser burro! Saara é um deserto.
-Ah tá...

Neste momento, Canário chega à mesa com outra cerveja.
-Fala para ele do Sacrá, Andrade... – brinca o dono do bar.
-Ah, vai pra lá botequeiro... Eu sei que Sacrá é outro deserto.
-E você sentaria nele? – perguntou irônico o professor aposentado.
-Então mestre... Só de noite. Porque eu sei que de dia os desertos são muito quentes e a noite são bem frios...
Um minuto de silêncio constrangedor e o bar todo explode em gargalhadas.
-Do que estão rindo? – quer saber Derico.
-De você sentado num sacrá... E só à noite. – e Canário abre a cerveja e se vai.
-Não to entendendo nada... Vamos voltar a falar do natal... Eu acho que a cidade está bem no clima.
-Não acho – diz o professor aposentado – este natal europeizado é de doer. Imagina pinheiros nevados num calor de mais de trinta graus! É terrível de falso.
-Poxa velho mestre... Tradição é tradição.
-Que seja... Mas me dá uma coisa ruim de ver renas, neve, e aqueles duendes que mais parecem anão de programa de TV aberta, isto dá.
-Eu fico pensando naquele cara vestido de papai Noel que fica no centro... Mesmo eu gostando de tradição, dá certa dó do cara. Maior calorão.
-É... Pelo menos nisto concordamos.
-Mas tenho certeza... Ele faz isto porque gosta, pela tradição. É dos meus.

Antes mesmo de a frase sumir no ar, o tal papai Noel entra no bar.
Suado, ainda assim completamente paramentado. Numa rápida olhada é possível certificar-se que a barba é dele mesmo.
-Põe uma quente pra mim... – diz ele.
Canário então destampa uma garrafa de bagaceira e serve. De uma talagada só, o papai Noel mata a dose de pinga. Escolhe e pede um dos mais gordurosos torresmos da estufa e em duas mordidas acaba com a iguaria.
-Quer um guardanapo para limpar as mãos? – pergunta Canário.
-Precisa não... Limpo depois na roupa da molecada que vem me abraçar...
-Mas e o bafo? – pergunta Derico.
-É verdade... Tem cada moleque que parece que nunca escova os dentes... Por isto que eu bebo.
-Mas e a tradição? – pergunta ironicamente Andrade.
-Eu mantenho... Bebo só bagaceira e como torresmo... Sempre.

Depois da saída do papai Noel, o silêncio toma conta do bar.
Andrade, com ar superior encara Derico, que envergonhado fita o vazio.
-Sabe mestre... – diz Canário para Andrade - Só esquecemos de perguntar a ele se tradicionalmente também senta no sacrá.

Comentários

Magnum disse…
Eu acho que as crianças é que sentam no sacrá dele, velho safado..
Maurilyn Júnior disse…
Já falei que esses contos do Groo deveriam estar num livro??

Parabéns!!!
Marcelonso disse…
Groo,

Seus contos são espetaculares, merecem um livro com certeza.


abs




Rubs disse…
Brrrrr, que frio do sacrá. Deserto é φώδα.
Bão dimais, o causo.
Tô caçando o Gente Boa pra pedir um sapeca negrim emprestado. Viu ele por aí? Viu ele por aí?
Vander Romanini disse…
Véi, esses contos são simplesmente maravilhosos!!!!