Aniversário de S.P. :O Amor em São Paulo

A estátua equestre de Duque de Caxias iniciou sua cavalgada naquela tarde de calor insuportável saltando de seu monumento para dentro da avenida que leva seu nome no cruzamento com a Avenida Rio Branco, no centro da cidade de São Paulo.
Empinando seu cavalo negro feito de bronze e brandindo a espada por sobre sua cabeça num gesto imperioso de 'avançar', cavalgou sobre carros e ônibus que eram abandonados por motoristas e passageiros situados entre atônitos, maravilhados e abismados com a cena. Crianças olhavam o espetáculo esperando que a qualquer momento, vindo dos céus surgisse um desses heróis japoneses da moda e desse um jeito no monstro de bronze. Sorriam e pulavam enquanto eram arrastadas por pais apavorados em fuga.
Em uma das alamedas paralelas à avenida, do alto da torre da igreja do "Sagrado Coração de Jesus", outra estátua - esta do Cristo - observava serenamente os movimentos do cavaleiro e, como aquele outro Cristo que abre os braços sobre o Rio de Janeiro sem proteger ninguém, nada faz.
Por que será que também ele não desce lá do alto da igreja e caminha sobre a cidade com seu 'Sagrado Coração' à mostra endireitando os errados e eliminando os que não têm conserto?
 Bom era que ele tivesse um cajado para passar nesta corja de descerebrados inimigos do povo humilde, dos que exploram os mais fracos, dos que oprimem sem dó nem piedade os que não têm como se defender, amparar os que se sujeitam por necessidade. Seria ótimo ver que o Cristo também fica "retado" e que está do nosso lado.
Mas como ele não desce mesmo, cavalo e cavaleiro de bronze seguem pela avenida afora
sem encontrar maiores obstáculos que os carros e ônibus do caminho.
Em uma das calçadas, bem defronte a um teatro de espetáculos pornográficos, um cantador cego ouve os estrondos dos passos gigantes e de sanfona ao peito, num canto gritado entoa uma quadra de sua terra: "Lá vai, lá vai/ a turma pesada que o adversário há de ser... / Eu quero saber o que em mim odeia/ eu sou coluna de aço se tu quer passar/"arrudeia".

A cavalgada se interrompe em frente à estação Júlio Prestes. O Duque de bronze fica imóvel por alguns instantes. Ouve-se um suspiro de alivio da multidão, que mesmo de longe e amedrontada acompanhava a cena toda.
-Acho que parou...
- Parece que voltou ao normal!
- Deve estar com medo do Jaspion...
Ouviu-se sirenes dos carros do corpo de bombeiros que fica ali bem perto, enxergaram-se helicópteros no céu azul, até alguns rostos voltaram a exibir tímidos sorrisos.
Durou pouco, o gigante negro ergueu o braço direito, que segurava a espada, e vibrou um golpe poderoso contra a base da torre do relógio da estação decepando assim o carrilhão como se fosse uma simples flor de jardim.
Soltou as rédeas do cavalo, que segurava com a mão esquerda, e aparou a queda da torre guardando-a no alforje sob a sela.
Agora não havia mais pânico, só espanto. A área fora toda isolada pela policia, que demorou, mas apareceu distribuindo seu costumeiro mau-humor e alguns cascudos nos curiosos.
E quem não ficaria curioso com uma situação destas?

Cavalo e cavaleiro apontam agora o focinho e nariz para a construção centenária da Estação da Luz.
Já não pisoteava veículos, apenas arrancava fios de energia, telefone e fazia buracos no asfalto, mas estes já eram tantos que ninguém notou.
Desceu a Rua Mauá, cruzou o viaduto Couto Magalhães e chegou a Estação da Luz pelo lado do Jardim, de onde as putas, os gigolôs, alguns desocupados, aposentados e uma leva de coreanos puseram-se em fuga alucinada. Não se sabe se da estátua ou da polícia que estava "gentil" como nunca, distribuindo sua "simpatia" sem fazer distinção alguma. Impossibilitados que estavam de fazer algo realmente útil apenas cumpriam a função de afastar os passantes e abrir caminho para a passagem do herói da guerra do Paraguai de bronze.
Na Estação da Luz a parada e o suspiro se repetem, mas desta vez não houve alívio nem comentários, só apreensão.
Repetiu-se também o gesto do braço levantado e o  golpe contra a torre do relógio. Recolheu-a também com a mão esquerda guardando-a no alforje junto à outra.
A estação já centenária, por onde o cantor e poeta Alceu Valença disse que chegaria o verão, ficou sem o relógio. Oferta dos ingleses que a construíram semelhante ao Big Ben londrino, perdendo assim o seu charme e fazendo com que o bairro do Bom Retiro já tão desfigurado pelas lojas de moda e prédios ‘padrão’ erguidos pelos imigrantes coreanos para que o bairro tomasse ares de uma Seul tropical e ficasse ainda mais feio.

A estátua cruzou a Rua Mauá e cavalgou na Avenida Cásper Libero observada por rostos pálidos nas janelas do casario antigo e mal conservados onde funcionam bordéis e hotéis sem classificação.
Seguia sem danificar sequer um prédio destes e, não ser pelo corte das torres pode-se dizer que não causou grande prejuízo à arquitetura do bairro da Luz, que por baixo de toda a poluição visual e dos maus tratos das reformas de urgência é muito bela.
Passou pela Praça Alfredo Issa, cruzou a Avenida Senador Queiroz, atravessou o Vale do Anhangabaú pelo viaduto Santa Ifigênia, estrutura antiga e segura que nem balançou á passagem de tamanho peso.
Ganhou o centro velho de São Paulo ao atravessar o Largo São Bento e entrar na Rua Boa Vista com suas dezenas de agências bancarias até desembocar no Pátio do Colégio, onde a Cidade de São Paulo começou e que agora abriga o Museu Anchieta que possui o ultimo pedaço de uma São Paulo do século XVII: uma parede erguida com barro e sangue de boi.
Na frente do Museu de Anchieta há uma estátua sem nome, feita do mesmo bronze negro da estátua de Duque de Caxias, no alto de uma pilastra altíssima de cimento, com os braços elevados à altura do rosto e estirados a frente do corpo, trajando um vestido longo que deixa à mostra apenas os pés descalços e que esvoaça ao sabor dos ventos. Ventos estes que também agitam sua cabeleira numa visão que emana liberdade e uma felicidade contagiante.

As suas costas: o colégio que dá nome ao pátio, seu museu e sua igreja servem-lhe de proteção contra a cidade imensa e hostil que cresceu a partir dali a mais de quatrocentos e cinquenta anos.
Duque de Caxias apeou de seu cavalo amarrando-o as grades do Viaduto Boa Vista e aproximou-se da estátua sem nome.
Trazia nas mãos o alforje que antes estava sob a sela e pela primeira vez notou-se em seu rosto alguma expressão que parecia ser de tristeza.
Tentou em vão chamar-lhe a atenção com gestos de cortesia, mas não obteve êxito. Ofertou-Ihe então as torres cortadas junto às estações de trens, a estátua sem nome não lhe deu novamente atenção e ainda por cima virou-lhe as costas.
Uma lágrima negra rolou pela face de bronze de Duque de Caxias caindo ao chão e produzindo um som estranho atraindo a atenção da estátua sem nome.
Ela olhou pelo canto dos olhos e enternecida tomou para si as torres prendendo-as junto ao peito.
Um sorriso aflorou aos lábios do gigante de bronze que estendeu a mão e num gesto delicado ajudou a estátua sem nome a descer de sua pilastra conduzindo-a até seu cavalo ajudando-a a montar.
Desamarrou o cavalo e puxando-o pelas rédeas desceu a ladeira General Carneiro em direção a R. 25 de Março, sumindo por entre as ruelas e becos do bairro da comunidade árabe.

Ali perto, no largo São Bento, um casal de velhinhos ainda comentavam o que haviam visto.
Vasculharam a memória procurando algo semelhante ao acontecido naquela tarde e nada. Deram-se as mãos e com ternura trocaram um rápido beijo nos lábios. Sorriam um para o outro com uma jovialidade terna, felizes por terem visto e vivido tantas coisas juntos e assim foram celebrar o amor num dos bares da Rua Libero Badaró, por que no fim das contas, isto é só o que importa mesmo.

Comentários

Marcelonso disse…
Groo,

Dessa vez vc se superou. Que belo texto.

abs
regi nat rock disse…
A "cantada" na moça do obelisco não me convenceu, até pq os mimos ofertados, não faz juz ao que ela representa, afinal, o monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, representada pela "boazuda" à época , representa a cidade e carrega um ramo de louros, uma foice e uma tocha, representando, respectivamente, a glória, o trabalho e o fogo simbólico da religião e da cultura. E vem o Caxias ofertar dois pedaços de marcos da cidade? Pô Groo, A gente sabe que os brazucas modo geral tem inveja da força da cidade, mas aí vc exagerou.... Idéia ótima de texto, diga-se. Em tempo, o autor do obelisco foi Amadeu Zani Só não lembro quando. Ela está lá bem mais tempo que o gaúcho que, aliás está sentadão no cavalo, enquanto ela permanece de pé... Sintomático né ??? POr aqui, tem pouca gente sentado em berço explendido. Nosso alcaide é o exemplo perfeito de ódio a cidade que, tem como lema, Non Ducor Duco... O Duque podia andar até o viaduto do chá e aproveitar a espada para degolar o FDP. Não seria a primeira vez que faria algo parecido. Abração
Rubs disse…
Ah, um conto maior, sobretudo, em qualidade.
Cheguei a ver, como num filme de Peter Jackson. E um conto que faz ver não é para a pena de qualquer um. Estou boquiaberto.
Contudo, há algo que me evoca uma aflição recôndita, uma ansiedade insólita... O exame levou-me a identificar a fonte do desconforto: foi a ação de decepar as torres.
Imagine um herói cortando o obelisco de Buenos Aires, ou de Whashington. Quase sinto a dor. A explicação é ancestral e universal: o obelisco, o menir, a coluna de pedra, representam e manifestam poder porque são fálicos. Por isso, os gregos colocavam colunas de mármore com cabeças barbadas e um bilau apontado para cima nas fronteiras. Ė a Herma (procure as imagens na net). Caxias cortou o tempo imperial e levou junto a potência. A sua representação feminina virou-lhe as costas e, agora, eles estão definitivamente dissociados, desunidos.
Cuidado, Ron. Quem não sabe conquistar e unir-se ao feminino, pode acabar como o Gildo (pobre Gildo) ou acabar virando uma estátua de bronze, de pedra, ou algo ainda mais desumano.
Abs.
Manu disse…
Texto sensacional, Groo, parabéns!

Abs!
Magnum disse…
Genial! Fantástico! Comovente!

Regi nat, desde quando um militar tem sensibilidade para saber escolher presentes para uma dama??? Achei perfeito inclusive neste contraste (esta dificuldade de comunicação) entre o truculento militar e a musa.

Perfeito, Ron!