A aposentadoria

Ia se aproximando do prédio onde trabalha e pensando: “-Vou fingir espanto!”
A cada passo ia se lembrando das coisas que fez, das presepadas que aprontou com o povo da repartição e se forçava a conter o riso, não fica bem entrar em uma festa surpresa gargalhando...
“-Melhor mesmo é fingir que não sabia de nada.” - pensa mais uma vez.
Também lhe passa pela cabeça que todos sabem que ele sabe. Afinal, são mais de trinta anos de repartição e quantos ele não viu se aposentar neste período? E com todos foi a mesma coisa: festa surpresa, homenagem , bombons, arranjo de flores abraço... Tudo absolutamente igual! Desde a floricultura de onde vem o arranjo até a bomboniere... Até as piadas são as mesmas.
Até os casos engraçados, afinal, todos estavam juntos quando cada um aconteceu.
“-Mesmo assim vou fingir espanto...” – decide.

Entra no prédio e cumprimenta o ascensorista. O mesmo há muito tempo e que certa vez reclamou de ter sido chamado de “anacrônico”.
“-Pô doutor... Eu nem sei o que é isto ai... Mas com este jeitão de xingamento, coisa boa não é...” -disse Jordão, o piloto do elevador.
E não era mesmo. Pensava que em pleno século vinte e um, com a modernidade atropelando pessoas a rodo, um cara dentro de um elevador apenas para apertar um botão e dizer: “sobe” ou “desce” juntamente com um “cuidado com o degrau” era coisa do passado.
“-Será que ele guarda mágoa?” – pensou .
Desceu no seu andar de trabalho com sérias duvidas sobre o sorriso do Jordão: “-Ou não guardou mágoa e é um grande profissional, ou é um enorme de um filhadaputa”!

No corredor, ao passar pela mesa com as garrafas de café e chá lembrou das vezes ficou ali matando o tempo, conversando com todo mundo que aparecesse e segurando um copinho descartável sempre cheio.
Não tomava o café da repartição. “-Isto é uma tinta miserável. Deve fazer mal até pra alma.”
Mas ainda assim elogiava a tia copeira.

Ao entrar na sala onde trabalhava não viu um só dos companheiros. Ninguém havia chegado ainda. Atrasariam no seu ultimo dia de expediente?
“-Porque não? Sempre me atrasei...”.
Lembrou da vez em que ficou dez dias fora em pleno janeiro e quando voltou inventou uma desculpa esfarrapada sobre uma inundação em sua cidade que lhe fez perder todos os móveis de sua casa.
Comovidos, todos os funcionários da repartição engendraram uma vaquinha e – em uma loja de moveis de preço popular – lhe compraram todo o básico de uma casa inteira.
Comovido aceitou o presente, chorou abraçado a todos.
Só nunca contou que em sua cidade não tem nem rio.
“-Será que eles desconfiam?”

Aos poucos os colegas de trabalho chegam e é quase tudo da mesma forma de sempre.
As risadas, os “causos”, os bombons, a festa de despedida enfim... Só sentiu falta do arranjo de flores. “-Quiseram mudar alguma coisa, que seja....”
Ao fim do expediente, limpou suas gavetas, deu uma ultima olhada para sua mesa e se foi.
Ao chegar em casa, se depara em sua varanda com uma enorme coroa de flores daquelas que se coloca em jazigos: “Descanse em paz!”
Parece que não desconfiam não... Eles têm certeza.

Comentários

Manu disse…
Texto sensacional, Groo! :D

Abs!