Teatro, mais um conto de Le Sanatéur

-Eu não vou!
-Vai sim!
-Me recuso. Nem gosto de ópera.... Se ainda fosse um show de Art Blakey ou Louis Armstrong eu iria feliz, mas ópera eu não vou.
-Mas Ron, eu preciso de você lá.... Você tem de resenhar o espetáculo.
-L´Onça, você escreve tanto quanto eu.... Faz você o texto. Ópera e com balé eu me recuso.
-Você vai...
-Não vou.
Neste momento entra na sala Anselmo, um pacote de fotos numa das mãos e um alicate na outra.
-Bom dia chefe, bom dia Ron...
-Bom dia Anselmo, fala com o Ron aqui... Ele tá se recusando a ir cobrir a ópera para o Le Sanatéur hoje à noite...
-Não vou! – Afirma Ron novamente.
-Ópera? – Diz colocando as fotos na mesa e trocando o alicate de mão.
-É... Ópera. Vai dizer que não sabe o que é? – Diz irônico o chefe.
-Sei sim.... É aquele tipo de espetáculo que sempre tem canto lírico...
-Isto... – Marcel interrompe.
-... Balé... – Anselmo tenta prosseguir.
-Isto! – Marcel interrompe de novo se entusiasmando com um possível aliado.
-.... Um solista gritando em italiano, então vem um monte de caras suspeitos usando collant com enchimento nas partes, parecendo uma cambada de viadinhos e ficam dando saltinhos. Isto quando não vem um travesti e dá um tranco neles pos trás... Coisa esquisita aquilo.... Não gosto não...
Ron não consegue esconder o riso.
-Bárbaros! Hunos! É isto que vocês são, uns bárbaros longe de ser civilizados.... É só para você saber senhor Anselmo, o espetáculo de hoje é em alemão. Não em italiano.
-E desde quando você fala alemão para entender o espetáculo? Ou vai cair naquele lugar comum de que a linguagem da musica clássica é universal?
-Errr... Não... Claro que não!
-Mas você fala alemão? – Quis saber Ron.
-Não..., Mas você fala!
-Falo nada!  Quem te disse?
-O Anselmo.
-Eu? -Anselmo deixa cair o alicate que estava segurando. – Como assim?  - E ri.
-Grande camarada... Mas ele fala. Leva ele.
-Fala Anselmo? Você fala alemão?
-Não... Alemão não...
-Quer saber? Vão os dois.... Vão os dois comigo, um deve falar. Talvez os dois! E não to aceitando desculpas. To falando como chefe. É uma ordem. – E deixa a sala batendo a porta.
-Por que você disse que eu sabia alemão? – Quis saber Ron.
-Eu não falei. Ele jogou.... Disseram que ele precisa de um tradutor para impressionar uma mulher aí... E você por que disse que eu sabia?
-Autodefesa e tava querendo solidariedade.... Se eu me ferro cê vai junto. Somos uma dupla, né? Mas me diz.... Por que você está brincando com este alicate aí?
-O vidro do Studebacker quebrou e este foi o jeito que encontrei de tirar os cacos que ficaram presos na janela.
-Ah tá.... Já arrumou?
-Não.  Não tive tempo. Amanhã arrumo.
O Editor então volta à sala e diz:
-Estejam os dois à frente de minha casa hoje as nove em ponto, e Anselmo.... Limpe o carro.
-Ih.... É agora que não arrumo este carro mesmo!
-Quer que eu quebre os outros vidros?
-Não precisa.... Vou ferrar o carro apenas deixando que você dirija.
-Fato!

À noite o velho Studebacker - com Ron e Anselmo nos bancos dianteiros - encosta em frente ao luxuoso prédio em que morava Marcel L´Onça, na Park Avenue, onde o carro mais simples estacionado era um Rolls Royce Silver Ghost. Até o Studebacker estava envergonhado...
O chefe então surge ao lado de uma mulher loira usando um vestido de gala vermelho e adornada com jóias que pagariam o salário dos dois por alguns anos.
-Senhores, perdoem a demora, mas o elevador demora muito para vir da cobertura até o térreo. – E com um aceno de cabeça indica a Ron que desça do carro e abra a porta.
Visivelmente contrariado Ron faz às vezes de ajudante de chofer.
-Anselmo, meu caro! Por que veio com este velho carro? Onde está a Packard do jornal?
-Packard? – Estranha Anselmo.
-Do jornal? – Completa Ron.
-Realmente Marcel.... Este velho automóvel não condiz com a magnitude de um jornalista de renome como você...  Peça ao motorista que ao menos feche a janela. O vento está desarrumando meu cabelo.
Anselmo já se irritando com a situação que acabara de entender pede cínicas desculpas e diz que não há como fechar, por que o carro está sem vidro daquele lado.
Ron que também se sentiu traído sugere - com um sorriso ainda mais cínico que as desculpas de Anselmo - pare o carro e que os ilustres passageiros do banco traseiro troquem de lugar, afinal L´Onça é careca mesmo e o vento não lhe fará mal...
O chefe – que usa peruca - tosse em seco, mas se mantém calado. Sabe onde amarrou seu burro, agora é agüentar.
Já dentro do teatro o casal se senta obviamente um ao lado do outro, ficando Anselmo ao lado da mulher e tendo Ron imediatamente a seu lado.
A todo o momento ela pergunta a um dos dois o que está sendo dito. Pede que traduzam.
Marcel L´Onça transpira litros, preocupado com o que os dois vão dizer.

Em uma cena entra uma atriz vestida de rainha, a mulher pergunta à Ron:
-O que esta acontecendo?
-A rainha disse que vai mandar matar o rei.... Que ele é chifrudo.
Ela arregala os olhos.
Agora a rainha fala baixinho, com a boca quase colada ao ouvido de outro ator e a mulher faz a mesma pergunta para Anselmo que lhe responde:
-Agora ela esta falando que o rei é broxa.... Não dá no couro... E vai transar com o primeiro ministro.
Fica mais espantada ainda...
Então aparece um exército enquanto a rainha canta.... Ela apenas olha para Ron que traduz:
-Agora a rainha vai se divertir sexualmente com todo o exército.
Ela leva as mãos à boca: “Mas isto é uma obscenidade! ”.
Então aparecem em cena uns cavalos e Anselmo completa a informação.
-Agora ela vai se divertir também com os cavalos...
A mulher se levanta e sai correndo em direção à porta gritando: “-Isto é uma pornografia! Não me procure mais Marcel...”.
Os dois sacanas não conseguem segurar o riso, enquanto o chefe não segura o choro e a raiva.
Na manhã seguinte os dois são comunicados pela secretária de L´Onça de que – por vingança - terão de fazer obituários por um bom tempo e ainda ouvem da boca da funcionária: “-Ele disse que só assim vocês dois não arrumam confusão! ”.
Ainda lhes diz que é um desperdício, mas fazer o que?
Só que para azar do editor no mesmo dia há a confirmação de que o Papa Pio XI está com um dos pés gangrenado, por conta da diabete.
No dia seguinte o Le Sanatéur vai às bancas com a manchete de Ron na capa em oito colunas e com três pontos de exclamação e uma foto feita por Anselmo de um pé todo machucado.
PODRE O PÉ DO PAPA!!!

Em sua sala, Marcel, sem namorada, sem os melhores repórteres na ativa e com uma notificação do órgão que regula o jornalismo no país dando-lhe uma sonora bronca pelo mau gosto da manchete leva as mãos à cabeça, se arrependendo profundamente de ter acordado naqueles dias...

Comentários

Marcelonso disse…
Groo,

Essa dupla de repórteres derruba qualquer um! De tradutores então, nem se fala! Sensacional o conto, ri muito aqui.

abs
Manu disse…
Muito bom Groo! :D