A terceira

As crônicas do Nardo.



Feliz foi Adão...



-Despachante e corretora bom dia.
-Alô... Cês já estão aí?
-Bem... Atendi ao telefone, então quer dizer que já estou aqui né?
-Não sei...
-Bom... Pois não?
Não eram nem nove horas da manhã ainda e o dia prometia. Já haviam sido feito oito processos para transferência de propriedade de veiculo e nada mais, nada menos que sete estavam errados. Dois telefonemas haviam sido enganos. Um foi trote e um outro era cobrança da telefônica por uma conta paga de seis meses atrás.
A luz dentro do aquário onde trabalhávamos - quem leu as outras crônicas sabe – é bem pouca, o que nos ajudava era um pouco da luz solar refletida no vidro canelado. Não que trabalhássemos nas trevas, mas se procurássemos bem nos cantos do imóvel acharíamos alguns morcegos parentes do Batman.
De repente a luz solar se foi. Não era eclipse, nem tampouco o céu escurecendo para uma tempestade.
O cheiro da fumaça de diesel impregna o ar e as roupas.
Na porta surge um sujeito baixinho, forte para caramba. Chapéu de boiadeiro, botas de cano longuíssimo, as mãos sujas de graxa ou algo que o valha.
Sua voz encheu o escritório como água, sem deixar espaço. Alta, grossa e aparentemente feliz:
-Feliz foi Adão, que não teve sogra e nem caminhão! Bom dia aí gente que trabalha...
-Bom dia... – Respondem todos entendendo agora o sumiço da luz do sol.
O caminhão tapara sua entrada ao bloquear nossa porta. Completamente.
-Eu trouxe o bruto ai para fazer a vistoria, vou passar ele pro nome da minha menina. Legado pra ela, não é? É tudo que tenho, e vai ser dela. Pra morrer, basta tá vivo não é?
-Quantos anos têm sua filha? Ela dirige caminhão? – Quis saber o chefe.
-Não... Ela é uma flor de delicadeza. Não conseguiria nem virar o volante do bruto, mas se eu morrer (já disse que pra morrer basta estar vivo) ela pode vender o caminhão mais facilmente.
O caminhão em questão era um Mercedes Benz L1313, azul, ano 1973, mas muito bem conservado.
A tarefa seria decalcar o numero do chassi para que fosse feita uma vistoria regular sobre ele. Saber se a numeração tinha ou não sido alterada.
Para quem não sabe, ou não conhece, a numeração de chassi neste modelo de caminhão fica na longarina, mas na ponta dela quase na junção com o para choque dianteiro. Embaixo do feixe de molas, com o acesso um tanto difícil.
É necessário abrir a tampa do motor e se esticar para dentro do cofre para alcançar a numeração, tarefa esta que coube ao menor de todos os funcionários. O único que estava desocupado.
Pela via normal ele não alcançou. Quase cai dentro do capô com os pés balançando para fora, mas percebe nesta manobra que se esterçassem as rodas dianteiras inteiramente para a esquerda seria possível alcançar a numeração entrando por baixo. Pelo vão da roda.
O local era apertado, mas era possível fazer.
O dono do caminhão se oferece para entrar naquele espaço dizendo que ali havia graxa e que o funcionário baixinho poderia se sujar.
Sugestão aceita.
O funcionário então dá a ele o bastão de grafite e um pedaço de fita adesiva tipo etiqueta para que ele faça o decalque e sobe até a cabine para esterçar as rodas.
Lá de baixo o caminhoneiro verifica que há pouca luz e que daquela forma não consegue encontrar a numeração gravada. Pede então para que mais uma vez se abra o capô do caminhão.
-Mas como abre?
-Tem uma correntinha ai em cima não tem?
Ele procurou e procurou. Olhou para todos os lados e só havia uma corrente que pendia do teto: “-Deve ser esta!” – pensou.
Puxou a corda com toda a força, afinal a tampa do motor de um caminhão deve ser pesada, ou não?
FUUUUÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ!
O violento esporro da buzina atrai todos para fora do escritório a tempo de ver o dono do caminhão sair de baixo dele atordoado, com um corte no supercílio. Provavelmente por ter batido a cabeça no chassi.
-Desculpa aê! Foi sem querer, mas não tem outra cordinha...
-O que? Embaixo do painel...
-Eu puxei aquela que pende do teto, desculpa...
-Ahã? Debaixo do painel... Tá embaixo do painel...
-O que tá embaixo do painel?
O caminhoneiro não responde. Não ouvia mais nada. Se bobear nem sabia mais onde estava.
Feliz foi Adão, não teve sogra nem caminhão. E nem precisou decalcar o chassi...

Comentários

Felipão disse…
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA

na hora em que olhou pro teto já imaginei o cara batendo a cabeça lá embaixo...

HAUHAUAHUAHUAHUAHAHUAHUA

Incrível

Parecia que eu tava lá...
Felipe Maciel disse…
Pra morrer basta estar vivo. Mas debaixo do caminhão parece que a chance aumenta...

Nossa, deve ter sido um baita de uma pancada hehehehe
Unknown disse…
Óla Ron, só agora consegui ficar livre dos trabalhos em me envolvi.

Passei pelos posts e já tive a minha dose de diversão tudo ótimo e parabens está cada vez melhor.

abs.
Marcos Antonio disse…
hahahahaha muito engraçado! o maluco deve estar surdo até agora!
hahahahaha
SAVIOMACHADO disse…
Hehehehe... Enquanto eu lia as Crônicas do Nardo pensei comigo. Como seria a capa do livro do Ron Groo.
Muito bom Groo. Faço jus a frase de Felipão. "Parecia que eu estava lá", como sempre.
Grande abraço.
SAVIOMACHADO
Quati disse…
GENIAL, GROO!!

Seus textos são realmente fantásticos!
Parabéns!!

Concordo com a galera!
PARECIA QUE EU TAVA LÁ! ^_^'
Anônimo disse…
Grande, conheci seu blog hoje, já percebi que iri virar leitor assíduo, muito bom.
Ri muito, me imaginei no lugar do cara, como sou meio desastrado (para não dizer tapado), eu faria o mesmo, ou pior. rsrs
Ron Groo disse…
Valeu Felipão, foi um elogio gostoso de ler. Dizer que parecia que estava na ação do texto. Valeu!

E foi mesmo Felipe, fiquei com a consciência pesada um tempão.

Joel, brigadão.

Sei não Marcão, mas deve mesmo.

Capa do livro Sávio? Quem me dera! Valeu pelo elogio.

Poxa Buck Quati, assim eu acredito mesmo hein?

Kalado, valeu! Espero que volte mesmo. Varias vezes. Brigado pela visita e pelo comentário.
Gustavo disse…
Tô atrasado , mas lendo aos poucos. Genial mais uma vez morri de rir e concordo plenamente com o Felipão, faz a gente se sentir na ação.
Gustavo disse…
Tô atrasado , mas lendo aos poucos. Genial mais uma vez morri de rir e concordo plenamente com o Felipão, faz a gente se sentir na ação.