Neblina, urina, senhoras... (Conto)

A neblina – densa - dava uma sensação esquisita de proteção.
Os três estavam envoltos no nevoeiro conversando desde a meia noite e agora já passava das duas e meia da madrugada..

Estavam nas ruas da cidade desde o inicio da noite, passando de bar em bar e conferindo o que rolava em cada um deles.
Passaram por rodas de samba muito meia boca; apresentação de uma big band de jazz e um monte de bandinhas de covers rock´n´roll.

Tudo era festa naqueles tempos, eles eram jovens, o mais velho – Rodrigo - estava com 21 anos, embora o tamanho do corpo apontasse uma falsa impressão de muito mais.
E os outros dois não ficavam atrás...
Silvio, o mais novo - tinha dezenove - era o maior deles todos.
Alto, corpulento, mas muito gentil nos modos e nas palavras, sempre.
Bruno, o do meio com vinte anos, dificilmente saia de casa, era muito tímido.
Rodrigo ao saber que desta vez o amigo também iria com eles para a noitada, comentou com Silvio que era capaz de acontecer alguma coisa diferente: “-Ele vai? Vixe! Vai ocorrer uma tragédia qualquer!”.

Talvez não fosse para tanto, mas realmente não era comum que Bruno ficasse fora de casa após as nove da noite e nunca se entendeu por que...
Enfim, foram e nada de anormal ocorreu até a volta quando já cansados da peregrinação pelos bares resolveram voltar para casa.

O caminho, obrigatoriamente, passava primeiro à frente da casa de Bruno, e lá se deixaram ficar conversando.
Animados e com uma quantidade considerável de refrigerantes no estomago - só para sublinhar como os três eram “coxinhas” – a bexiga urinária alguma hora daria sinais de existência e esta hora se manifestou primeiro em Silvio.

-Acho que vou tirar a água do joelho...
-Mas logo na frente da minha casa? Pelo menos atravessa a rua pô!
-Ih... Frescalhou? Eu sempre mijei aqui porra?
-Mas vai mijar do outro lado hoje...
-Tá... Com esta neblina toda eu faria até no meio da rua...

Rodrigo - como é comum tanto aos que mijam como aos que bocejam - de repente sente a mesma vontade irrefreável de urinar.
Logo Bruno também se junta a eles e num instante estão os três do outro lado da rua, encobertos pela neblina inocentemente... Mijando.

-Numa hora destas que se pensa que a vida é simples né.... Maior sossego...
-Tranquilidade... Né Brunão?
-Sei não... Do jeito que a gente é, é bem capaz de aparecer um monte de gente ai agora mesmo...

Os protestos de “agourento”, “medroso” e outras palavras menos elogiosas iam se perdendo entre risadas quando...

Vou tentar explicar o que houve na visão dos três, já que o que aconteceu de verdade é um tanto monótono:
De repente a neblina se dissipou, uma lua cheia muito redonda e excessivamente brilhante se fez presente iluminando a cena como se fosse o sol.
Do lado esquerdo da rua surge um grupo de pelo menos vinte senhoras evangélicas vindas de uma vigília em seu templo. Ao mesmo tempo em que do lado esquerdo uma fila de carros com faróis de milha e buzinaço completando o serviço que a luz já fazia.
Os rostos assustados e os olhos arregalados mostravam que ao menos indignadas as senhoras haviam ficado - ficará a cargo de vocês interpretarem com o que, e desde já digo que a maldade neste caso é permitida – e correram para o mesmo lado de onde haviam vindo..
Os rapazes ainda mais assustados se atrapalham todos ao tentar cortar os jato e guardar os utensílios, fazendo assim aquele chamado serviço porco. Coitadas das mães que teriam de lavar aqueles jeans...
Atravessam a rua novamente, curiosamente já envolvida pela neblina que afinal nunca os havia deixado e abrem o portão ficando assim dentro da propriedade da família de Bruno.
E aqui volto ao que realmente aconteceu...

Algumas risadas nervosas entre eles, e um nervosismo nem um pouco engraçado dentro da casa.
A mãe de Bruno - assustada com os barulhos em seu portão - chega à janela para espirar o que ocorre e – mais uma vez por culpa da neblina – não reconhece o filho e os dois amigos.
Sem perder tempo pega o telefone e liga para a policia que não tarda a chegar.
As luzes do carro da PM iluminam os três que conversavam calmamente e eles claro, se assustam!

-Os três ai... Devagar! Vão saindo daí e se encostando no muro aqui fora... Deixem as mãos onde a gente possa ver!
Mesmo sem entender nada eles obedecem, nem são loucos de questionar homens armados àquela hora da madrugada.

Com o peito encostado ao muro os três são revistados e o policial militar chega a estranhar o fato dos três estarem úmidos na região pélvica, mas acha melhor não dizer nada para depois não ser acusado dentro da viatura de apalpar os revistados com outras intenções...
Outro policial se encarrega de checar as carteiras de identidade enquanto um terceiro vai até a porta da casa conversa com a senhora que os chamou.
Ela vem até o portão ver exatamente do que se tratava, já que o PM havia dito que um dos três disse que morava na casa e por isto estavam do lado de dentro dos muros.

Ela os reconhece de imediato, agradece aos policiais, que devolvem os documentos pedindo a todos um pouco mais de cuidado e zelo ao requerer os serviços da policia militar.
E quando voltam à viatura para enfim retornarem a ronda – ou as cervejas dirão os maldosos, que a maldade ainda está liberada nas interpretações – tudo parece resolvido.

Os rapazes vão se despedindo enquanto a mãe de Bruno se recolhe e ao se afastarem ouvem novamente:

-Vocês três ai... Mãos no muro e pernas abertas...
Junto com os novos policiais militares estão algumas das senhoras lá do inicio da confusão.

-São estes ai sim... São eles que ficaram se exibindo pra gente...
-Mas seu guarda... – diz Rodrigo
-Senhor policial rapaz... – corrige o PM.
-Então... A gente não tava se exibindo... A gente estava mijando, que culpa temos se elas apareceram?
-Mijando?
-É... Inocentemente! Tanto que quando elas começaram a gritar a gente teve maior trabalho pra cortar o jato e... Bem o senhor sabe...
-Ah... Sei... E vocês têm como provar?

Então os três, ao mesmo tempo erguem as camisetas e mostram a mancha escura à esquerda do zíper...

-Sargento... Tudo resolvido. A gente não pode fazer nada... Vou liberar os meninos e o senhor libera as senhoras ai...
-Tem certeza? Não dá pra enquadrar eles em nada?
-Só se for falta de higiene pessoal... E acho que isto nem é crime...
E virando para os três...
-E vão pra casa tomar um banho e trocar de roupa... Molecada nojenta....

Mais que depressa os três se despedem e somem naquela neblina densa pensando: “-Eis aí a tal tragédia...”.

Comentários

Desventuras em série deveria ser o título desse post, muito parecido com o que acontece com jovens que procuram sair do tédio à noite e geralmente são abordados...tendo urinado em lugares nada discretos...ou não....enquanto os verdadeiros bandidos nunca são revistados...nem mesmo os que estão em templos religiosos ou no palácio do planalto!

Parabéns mais uma vez Groo!
Fábio Andrade disse…
Eu bem conheço senhoras "evangélicas" que não se sentiriam nem um pouco vexadas da cena. Crente do rabo quente é o que mais existe por aí.
Felipão disse…
esse texto me remeteu às minhas noitadas quando tinha mais ou menos a idade dos personagens...

Bateu uma nostalgia, inclusive..
Renato Bellote disse…
Esse blog tem que virar livro...rs

abs
Ron Groo disse…
Obrigado aos corajosos que chegaram ao fim do texto.
Parece que todos ficaram com preguiça de lê-lo.
Unknown disse…
Ótimo, gostei e fui até o fim.
Concordo com o Renato!