Os peões da obra. (Mais uma crônica de um dia quente)


Desde que a companhia ferroviária resolveu trocar a estação da cidade de lugar (coisa de cem metros) – construindo uma novinha com modernas instalações a vida na cidade tinha se tornado um inferno.
Não bastasse o transtorno, o pó da demolição do casario que estava no lugar da nova estação, ainda tinha o barulho da obra e claro, os peões.
Sentados à hora do almoço por todos os cantos da nova estação, faziam às vezes de olhos, ouvidos e boca da obra.
Nada acontecia pelas imediações sem que eles soubessem e pior: comentassem.
A menina que é gerente da loja tomando um esculacho do namorado foi hit entre eles semanas atrás.
Hoje ela passa pela obra e não ouve os tradicionais assobios, mas um insistente e jocoso “cocóricó”.

Ao ouvir o sapateiro da rua reclamando que odiava o próprio apelido (o nome do homem é Baltazar, mas pelas costas todos o chamam de “cobra” que na verdade é uma simplificação para “engole cobra”) fizeram um simpático sambinha que é cantado toda vez que o indigitado aponta no inicio do quarteirão e só para quando dobra a última esquina: “-Cobra... Seu Baltazar cobra... Cobra o serviço que eu pedi/ Não é porque somos amigos que o senhor vai ter que engolir... Cobra, seu Baltazar cobra...”.

Nesta última semana o calor infernal que se abate sobre a cidade parece ter acirrado os ânimos. Houve até barraco.
O caso é que Batistão (que é prejudicado verticalmente) é casado com uma tremenda gostosona, - e por ser anão todos ficam melindrados ao dizer qualquer coisa à ele, o que não impede os comentários maldosos pelas costas.
O mais comum é quando passa o cotoco de gente de mãos dadas com o avião (abraçado não dá, a mulher teria dor nas costas) é: “-Macumba... Só pode ter sido macumba.”.
Outro comentário - que foi recebido com certa desconfiança pela comunidade local - foi exatamente do sapateiro Baltazar: “-Anão costuma ter bilau grande.”.
E quando os olhares se voltaram para o sapateiro: “-E o que dizem... Eu nunca vi... É o que dizem.” – tentava explicar ou consertar.
Mas o certo é que apesar das piadas ninguém podia dizer nada de concreto de Dinorah, a esposa do toco de amarrar jegue. Havia desconfianças, mas todos guardavam apenas para si. Alguns acreditavam sinceramente na devoção da gostosa pelo tampa de caçulinha.
 -É amor!– diziam – Só pode ser... O cara é feio, anão, pobre... Só pode ser amor. – diziam.

Mas quando Dinorah passava pela obra da estação os comentários não eram velados e cochichados, mas escancaradamente gritados.
“-Ô mulher econômica, até homem ela escolhe pela metade...” – ou – “-Vem ni mim (sic) que aqui não tem economia não...”.
Ela sorria... Talvez aquilo aumentasse sua autoestima ou... Vai saber?

Quando descobriu os gracejos, Batistão foi até o portão da obra e sem medir consequências chamou todo mundo pro pau.
“-Podem vir todos ai... Dou rabo de arraia em todo mundo!” – gritou.
Obviamente não desceu ninguém. Uma briga com alguém do local poderia despertar a ira em todos da comunidade e até acabar em demissão por justa causa. Além de – claro -saber que estavam errados.
“-Não vai descer ninguém é? Cambada de frouxo!” – disse vitorioso o piloto de autorama que girou nas solas dos sapatos e se encaminhou triunfante para o bar. Havia vencido a parada contra os maledicentes.
Pega então uma meia cerveja e volta para a porta do bar, com ares de superior.
Olha firmemente para o alto da futura nova estação e dá goles vigorosos em sua cerveja.
-Aê cambada de peão! Tão vendo esta cerveja aqui? É minha... Grita ai que é gostosa, que é econômica... Ainda assim vou tomar sozinho. Entenderam?
-É que é meia... – diz alguém em cima da obra sem se deixar identificar.
-Não entendi... – diz o anão.
-Você toma sozinho porque é meia cerveja.
-Não faz sentido. Cê acha que se fosse uma cerveja grande eu não tomaria sozinho?
-Não... Vai vendo. É como sua mulher.
-O que tem ela?
-Se fosse uma meia mulher, que nem você que é só meio homem, seria só tua...
Batistão até queria continuar a discussão, mas por azar (ou sorte) no começo da quarteirão aparece Baltazar e logo se ouve apenas o sambinha... “-Cobra... Seu Baltazar cobra... Cobra o serviço que eu pedi/ Não é porque somos amigos que o senhor vai ter que engolir... Cobra, seu Baltazar cobra...”

Comentários

Magnum disse…
Muito grande (a crônica!)... Será que alguém vai aguentar ler inteira? hahahaahhah, mas eu li! Muito boa mesmo!
VOU DAR UMA DE PAULISTA: ÔRRA MEU....SE ISSO É UMA CRÔNICA GRANDE.... BELEZA GROO, MANTENHA O ESTILO.
Rubs disse…
Uai, embora primoroso, esse seu conto sugere indícios de tendências suicidas. Talvez fosse o caso de tomar um remédio...
O melhor da loucura é que ninguém se acha louco...exemplo aí em cima....
E DE PERTO NINGUÉM É NORMAL, JÁ DIZIA O CAETANO VELOSO QUANDO ERA VIVO.
Por isso é melhor segui Proust abaixo do que o indigitado acima:

Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras - Marcel Proust (1613-1680)
Anselmo Coyote disse…
Ai ai ai... o Rubs Cascata de novo; será que esse roncolho vai nos dar sossego em 2013?

Abraço, Groo. Bela crônica.
Marcelonso disse…
Groo,


Como dizem : de perto, ninguém é normal...


abs