Conto para o dia de ontem

Estela e Walter estavam casados há mais de dez anos, mas ainda se diziam namorados, eternamente.
Os parentes e amigos disseram - direta e indiretamente – que ela enterraria sua vida, sua carreira para cuidar dele. Iria dentro em pouco se formar em comunicação social.
E mesmo que ela argumentasse que ele não tinha nenhum problema - além do óbvio - que ele era independente.
Não adiantava, ainda assim torciam o nariz.
Casou-se sob olhares desconfiados, quase de pena, porém foi feliz desde então.
Sempre soube que não seria fácil, mas o que nesta vida é?
Com o tempo a desconfiança foi cessando e todos viram que aparentemente a vida seguia em boa ordem para Estela.
As mudanças foram poucas e a maioria delas vistas apenas dentro de sua casa, algumas adaptações normais e necessárias como deixar as coisas sempre nos mesmos lugares, para evitar que ele tivesse de memorizar tudo outra vez.
Assim, suas coisas de uso pessoal sempre estavam nos locais pré-determinados: sabonetes, escova de dentes, perfumes, creme de barba, roupas... E de preferência separados dos dela, para evitar que na pressa ele saísse vestindo uma blusinha dela por engano.

É que Walter era cego. Desde o nascimento.
Cego, mas nunca acomodado, nunca se ouviu dele uma queixa sequer...
Aprendeu braile, cursou tudo que lhe foi possível e se formou em direito.
Não exerceu por muito tempo, ganhou algum dinheiro com boas causas trabalhistas e com ele realizou um antigo sonho: uma cafeteria literária.
Lá era possível apreciar os melhores cafés expressos e ainda se informar com jornais, nacionais de diversos países diferentes. Livros, revistas variadas e ultimamente trabalhava na expansão dos serviços com uma rede wireless de alta velocidade para quem quisesse trazer seu laptop à cafeteria.
-Informação é tudo, e ela agora está toda na internet. – dizia.
-Como você sabe? Cê nunca viu? – perguntavam alguns gaiatos.
-Ver não vi, que tava ocupado com tua mãe – respondia. – Mas li que já existem equipamentos que permitem que nós, os deficientes visuais, possamos usar a internet como qualquer outro. E com o tempo, até isto vai ter aqui na cafeteria.
Ninguém duvidava que uma hora ou outra aparecesse por lá os tais equipamentos.

Acontece que naquele dia o clima dentro da cafeteria não estava muito bom.
Um silêncio incomodo permeava o ambiente e a cara de poucos amigos de Estela – que cuidava do caixa – não deixava duvidas: haviam se desentendido por algum motivo.
Walter tentava puxar assunto, mas recebia de volta apenas grunhidos guturais e frases lacônicas.
E o publico usuário do estabelecimento apenas assistia as cenas.

-Amor, tava estranho... Meu creme dental estava fazendo espuma demais, com um sabor esquisito. Mentolado, mas esquisito...
-Hunpf... É?
-E também meu desodorante...  Eu apertei o frasco e em vez daquela sensação de uma nuvem nas axilas eu senti um jatinho de água fininho... E os sovacos ficaram grudentos...
-Hein... Jura?
-Também não entendi o que aconteceu com minhas cuecas... Algumas estavam apertadas pra caramba e outras pareciam só ter uma tirinha na bunda... Demorei um bocado para achar uma que ficasse menos estranha no corpo, mas ainda assim tive a impressão de que era rendada...
-Hum!
-E os sapatos... Estes eu tenho certeza de que você se enganou, eu não tenho nenhum chinelo de dedos com a sola tão fininha quanto as que estavam em meu armário... E com florzinha nas tiras então?
-Tá certo Walter... Tá certo...  Eu mexi mesmo nas tuas coisas... Coloquei teu creme de barba no lugar da pasta de dentes, o liquido anti-chulé no lugar do seu desodorante e inverti as nossas gavetas de roupas intimas...  E pelo que to vendo... Você ficou com preguiça de procurar teus chinelos e veio com as minhas rasteirinhas mesmo...
-Mas... Mas... Amor? Por que fez isto?
A esta altura todos os clientes que já estavam na cafeteria prestavam atenção no dialogo.
-Pra você nunca mais na cama apertar aquele travesseiro anatômico e dizer que estou flácida e cheia de estrias...
-Mas amor... Eu não vi!
-Milagre, meu caro... Seria se tivesse visto.

Comentários

Rubs disse…
Genial, como sempre.
Mas o cego é burro. Seria um alter ego? Onde já se viu falar uma coisa dessas para a mulher? Mesmo que não fosse o travesseiro, a mentira amorosa é o principal fator de sucesso num casamento.
Abs.
Anônimo disse…
... Aiatoélio Gaspari ! Demais ! Mais uma do genial REInaldo Azevedo. Rubs, como vai ? Tem manifestação hoje ? Passagem da charrete aumentô ? Puxada por burro 10 centavos e, porque vai mais rápido, por cavalo pangaré 20 ? Onde ? Em Surucucu do Mato Baixo - Minas ? Toma cuidado com os coroné, Rubs ! Caipira vermelho canhoto eles somem com o cabra numa facilidade que até Deus duvida...



M.C.
Rubs disse…
Vermelho é o tinhoso e o sashimi do outro causo. O resto é gato excomungado. Mais cego é o Aikumim, que não enxerga a tocaia que o PTQP, armô mode ele caí.
Marcelonso disse…
Groo,

Tem certas coisas que jamais devem ser ditas a uma mulher...


abs