Swing

Denner é cego.
Não é politicamente correto dizer “cego”, mas ele é.
Diz a todos que “deficiente visual” é besteira e se sente diminuído com o termo “deficiente”.
”-Não tenho deficiência, só não enxergo.” – diz ele.
Mas tem um ouvido primoroso! Capaz de distinguir notas, tempos... E uma memória ainda mais impressionante.
Tinha um arquivo mental de nomes de músicas, datas de lançamento, fichas técnicas.
Conhecia diversos estilos, mas era apaixonado por jazz.
As subdivisões do gênero não lhe assustavam: conhecia todos. Do dixieland ao cajun, que mistura as influências creole (mistura das culturas francesas e africanas).
-Jazz é jazz, não é étnico... Não é world music. Aliás, que termo mais idiota. – dizia.

Dos outros gêneros musicais gostava. Pero não tanto.
Ouvia blues, claro.
-Derivação do jazz. – ensinava.
Ouvia rock.
-Derivação do blues. – explicava
E destes, ouvia tudo o que vinha atrelado.
Gostava de country e sua versão nacional, o sertanejo.
-Universitário também, Denner?
-Não... Só dos já formados e com livre docência. – dizia e explicava – Tião Carreiro, Pena Branca, entre outros.

Só tinha algo que abominava, definitivamente: música gospel.
Não gostava da forma com que os cantores se portavam, ficando acima do bem e do mal como se portassem eles a palavra divina e assim sendo, eram melhores que todos.
A hipocrisia de dizer que eram contra idolatria, mas se sentirem bem com o fato de ser idolatrados.
E musicalmente?
-Este pessoal - mas não só eles - adoram mostrar potência onde não é preciso. Adoram imprimir carga emocional onde o sentimento devia brotar naturalmente. Sem contar que nem é um estilo... Usam tudo, do rock ao samba. Acham que não é o meio, mas a mensagem. Besteira. A mensagem é o meio. Dizem que “limpam” tudo com a “palavra” e que os “estilos” deixam de ser musica impura, ou do mal...  Mais besteira.

Faz este discurso para quem quiser ouvir, mas geralmente, o único que ouve é um amigo que está sempre por perto: Gildo.
Gildo, ou Gildão - como era mais conhecido – tinha como nome de batismo Adegildo. Era um negrão na acepção da palavra e tinha como maiores características - além do tamanho, claro (ou escuro...) – a ingenuidade e a sinceridade - mandava para a boca tudo o que o coração e a mente conjuram - e a fixação por sexo.

Uma das histórias mais conhecidas da dupla se passou na mesa do bar do Canário.
Denner e Gildão tomavam sua cerveja acompanhada de um prato de torresmos quando o celular do cego tocou. O ringtone era simplesmente “Take the A train” com Duke Ellington.
Denner atendeu e ouviu calado por alguns minutos. A forma com que prestava atenção, o assunto não poderia ser outro senão música.
Desligou após dizer que desconhecia. Que provavelmente deveria até existir, mas que mais provavelmente ainda: ruim. Insosso, como uma comida que sabemos que é boa, mas que pela falta de um sal, um tempero, ficasse intragável.

-Era o Ari. – disse ele para Gildo, assim que desligou.
-Ah, e o que ele queria? – quis saber o negrão.
-Me perguntou sobre swing... Queria saber se existe swing evangélico.
Gildão ouve e por um período fica em silêncio.
Silêncio, aliás, acompanhado por todo o bar assim que Denner falou sobre o estilo jazzístico. Esperavam que ele engatasse alguma explicação sobre.
-Olha cego... Na boa. Não sei para que o Ari quer saber uma coisa destas.
-Como assim?
-É que você não pode ver, mas aquela mulher dele... Cara...  Não adianta nem ele querer ir num lugar destes... Ninguém vai querer pegar aquele bagulho.
Denner deu mais um gole na cerveja e empurrou o prato de torresmos para perto do negrão.
-Come ai vai... Come.

Comentários

regi nat rock disse…
voce é um louco desvairado Groo.
me parece que vc já publicou essa pérola.
não importa. é espetacular .
Unknown disse…
Regi mandou eu ler...pq falava de coisas q gosto: mulher, musica, cerveja, torresmo...rsss
Boa cronica mesmo !!!
Marcelonso disse…
Com certeza, texto espetacular...

Mandou bem Groo.
Rubs disse…
Genal, Ron. Aliás, duas vezes genial, porque não sei onde já li isso.
E isso, essa sensação de déja vu de gênio, me provoca uma cascata de dúvidas. Creio que seja bom, porque só pensamos verdadeiramente quando há dúvida. Um juiz que não tem dúvida sequer precisa estudar os autos: sentencia. Então, o juízo é o ponto final do pensamento. Toda vez que você julga, saiba que parou de pensar.
Agora, estou em dúvida. Será que a mulher do Ari é tão bagulho que ninguém queira pegar? Nem que seja só para sacanear, ou se vingar do cara?
Será que Mahalia Jackson, Aretha Franklin cantavam gospel ou negro spiritual? Será que a Preservation Hall Band toca gospel?
E a pior dúvida de todas, justamente provocada pela pesonagem do Denner: e se a "palavra" não for para ser ouvida e, simplesmente, para ser vista, já que não seria meramente "palavra discursiva"? Será que eu posso ficar surdo para todo mundo?
̓Εν ἀρχή ἦν ὀ λόγος